Confesso que tive sentimentos conflitantes a respeito de “A Beautiful Day in the Neighborhood”. Depois de assistir a “Won’t You Be My Neighbor”, em especial, foi meio triste ver que o documentário dedicado a mostrar quem foi Fred Rogers, muito além de seu trabalho e feitos por explorar também o que fez dele um ser humano tão admirável, não recebeu o mesmo carinho. Bastou essa produção similar, semifictícia e com atores populares para chamar a atenção inexistente antes. A revolta não me impediu de conferí-la e, felizmente, encontrei um trabalho que não desonra de forma alguma o que conheci assistindo ao documentário.
O trabalho de Lloyd Vogel (Matthew Rhys) como jornalista da revista Esquire costuma envolver trabalhos investigativos e artigos que expõem intimidades e segredos de celebridades, o que trouxe a ele a reputação de alguém com quem as pessoas não querem estar associadas. Mesmo assim, sua nova tarefa o leva a entrevistar uma personalidade para um breve retrato. Essa pessoa é Fred Rogers (Tom Hanks), famoso por seu trabalho na televisão com programas infantis. Sem esperar nada desse trabalho banal, Lloyd descobre que seu entrevistado tem muito mais sobre si além de sua popular imagem de bom samaritano.
Seria exagero dizer que “A Beautiful Day in the Neighborhood” iguala “Won’t You Be My Neighbor” em conteúdo ou profundidade. O foco das duas obras não é igual, mesmo que sejam dois filmes sobre o Mr. Rogers. Ou será que são mesmo? O primeiro está mais para uma história de Lloyd Vogel, como ele conheceu Rogers e aprendeu algumas coisas sobre a vida e sobre si mesmo no processo. A inspiração vem de um artigo escrito da Esquire chamado “Can You Say… Hero?” escrito por Tom Junod, o jornalista real em quem Vogel é inspirado. Calha que o assunto desse artigo é a mesma pessoa do documentário. Por isso a tal indicação ao Oscar para Tom Hanks foi de Melhor Ator Coadjuvante. Ele realmente tem um papel mais secundário na história, não menos essencial por isso.
O foco ser outro não é demérito. Acompanhar Lloyd Vogel é diferente de casos em que o espectador se aborrece por ter que agüentar um personagem ou subtrama entediante enquanto há coisas mais interessantes no mesmo filme. Também não precisa ser uma competição para determinar o que é o interessante. Idealmente, deve haver espaço para todos os elementos porque é tarefa do grande todo trabalhá-los de forma complementar, com cada um sendo funcional a fim de que as engrenagens narrativas rodem juntas. “A Beautiful Day in the Neighborhood” traz isso em sua história baseada em fatos reais com alguns toques de fantasia bem colocada. Sim, de fato houve um envolvimento entre as duas figuras principais e isso é trabalhado sem que Vogel seja apenas uma forma de extrair conteúdo de Rogers.
Vogel é um jornalista de má fama entre celebridades por conta do teor ácido de seu trabalho sobre elas. Sua vida não é exatamente o que se chama de fácil por encerrar nós atados dentro de sua cabeça e de seu coração. Ele acabou de se tornar pai e não sabe muito bem o que fazer com as novas responsabilidades quando sequer trabalhou bem as antigas. Matthew Rhys evoca isso tão bem que é até curioso que seu nome não tenha sido visto entre as indicações a Tom Hanks, Tom Hanks e Tom Hanks. Sua performance torna visível o desenvolvimento de um personagem de demônios internos ansiosos para assumir o controle, talvez até fazer um estrago. E estragos são feitos. Nos momentos em que é necessário, Rhys traz à tona a energia de complexos latentes em surtos e explosões de comportamento quase descontrolado, regado a palavras carregadas demais para serem acompanhadas de racionalidade. É de se questionar quão rude uma pessoa pode ser num mesmo filme com alguém como Mr. Rogers.
“A Beautiful Day in the Neighborhood” não é raso nem burro. Deixar passar a oportunidade de usar Lloyd Vogel como alavanca expositiva para o personagem Fred Rogers seria totalmente contraintuitivo e provavelmente fatal. É através dos encontros que Rogers passa a mostrar quem é. E não há como dizer que “A Beautiful Day in the Neighborhood” faz um mau trabalho nisso. Arrisco dizer que os roteiristas provavelmente assistiram ao documentário ou ao mesmo conteúdo usado nele para criar algumas cenas que exprimem perfeitamente quem era Fred Rogers sem nunca falar que ele é uma celebridade admirável da televisão por estar há mais de 30 anos no ar ou por ter vencido esse e aquele prêmio. É em momentos simples como uma conversa com a participação inusitada de fantoches que se expressa a personalidade do indivíduo, algo que proporciona o mágico momento narrativo em que a mensagem chega na audiência antes de chegar no protagonista e ela percebe mais claramente quão cego e errado ele está.
Tom Hanks não perde de participar na construção desse sucesso. Li comentários dizendo que ele definitivamente não era Fred Rogers por causa dos olhos. Seu olhar supostamente não transmitia a amabilidade que conquistou tantas crianças do outro lado da tela da TV. E ver um trecho aleatório de “A Beautiful Day in the Neighborhood” me deu a mesma impressão inicialmente. Parecia Tom Hanks sendo Tom Hanks, como um amigo meu gosta de dizer que ele faz em todos seus papéis. Esse é diferente. A primeira cena já mostra isso e não é porque ele veste o suéter colorido e troca os sapatos por tênis, seu jeito de falar tem as qualidades que emulam a pessoa e os valores em que ela acredita sem abrir espaço para dúvidas, por mais que a aparência e o porte não sejam exatamente os mesmos. Ver o documentário pouco antes deste longa possibilitou perceber as nuances da performance com maior exatidão por conta da referência fresca na memória.
Marielle Heller também se destaca na recriação dessas mesmas particularidades que fizeram Rogers e seu programa tão famosos. Talvez seja um serviço aos fãs americanos que viveram para assistir tudo na TV, ao passo que em “A Beautiful Day in the Neighborhood” é uma forma de expandir a história para além da narrativa tradicional com uma amostra precisa do que era o “MisteRogers’ Neighborhood”. A introdução com ele entrando por uma porta, cantando o tema principal e trocando casaco e sapatos está ali, assim como os fantoches, o bondinho e todo a encenação dos quadros do programa. Mais do que uma homenagem direta, é uma reprodução fiel que usa os cenários originais e ainda funciona dentro da grande história como um artifício narrativo: a trama principal vira assunto de um episódio do programa. Subestimei e fui surpreendido.