“Rear Window” é provavelmente o filme que me fisgou definitivamente em direção ao trabalho de Alfred Hitchcock. Já havia visto outros filmes do diretor antes, “North by Northwest” e “Psycho” entre eles, mas por melhor que estes fossem ainda faltou um empurrão dado de muito bom grado por “Rear Window”. De que isso importa? Talvez não muito, exceto pelo fato de que hoje, tendo outras obras em mente, é possível ver tanto uma diferenciação do clássico cenário do inocente envolvido involuntariamente em perigo, o que é um belo respiro de variedade, como uma das experiências mais concisas e imersivas de toda a carreira de Hitchcock. Poucas vezes o Mestre do Suspense demonstrou a mesma aptidão como faz aqui.
L.B. Jefferies (James Stewart) é fotógrafo de uma revista, profissão que o leva para um canto do fim do mundo, para outro e de volta para casa, recorrentes aventuras de alguém que captura momentos marcantes sem importar o lugar. Mas um dia a adrenalina cobra seu preço e o rapaz fica com uma perna quebrada. Imóvel por semanas e sem tem muito o que fazer, Jeff busca consolo olhando para fora da janela procurando algo para se entreter numa casa sem televisão. Ele só não esperava encontrar algo como os suspeitos sinais de que um vizinho pode ter assassinado sua esposa.
Muito se ouve sobre a distinção entre filmes de ação e de drama, no sentido do primeiro suprimir o conteúdo dramático em favor do movimento e o último fazendo o oposto. É como se fosse necessário fazer uma escolha, como se a presença de explosões, perseguições, tiroteios, fugas, brigas, corridas, escaladas, saltos e assassinatos determinasse que os personagens serão bidimensionais e sem profundidade alguma. O contrário também vale, como se o foco no conflito e desenvolvimento psicológico determinasse uma constância de cenas de diálogo, pessoas sentadas conversando e discutindo enquanto tomam um café na sala de estar vendo televisão. Os dois casos constituem generalizações que, embora aconteçam com certa freqüência, ignoram uma dinâmica muito básica do Cinema como arte e, em termos mais simples, veículo de transmissão de informação. Assim como a publicidade depende da diagramação estratégica para aproveitar ao máximo o espaço limitado de um anúncio ou uma matéria de jornal trabalha com um número de palavras definido para caber na página com outras matérias, o cinema tem a câmera. E para que ela serve? Para registrar o movimento, é claro, o graúdo visto nas situações extraordinárias e o miúdo de uma micro-expressão revelando uma emoção reprimida.
Então existem histórias e histórias. Um problema inicial na concepção de qualquer uma é o fator cinemático dela, o quanto ela pode ser filmada de forma que o movimento seja um ingrediente elementar da experiência ao contrário de uma peça de teatro gravada. Não que isso seja um problema, pois vários filmes bons foram feitos usando apenas um ambiente, seja um carro ou uma sala de júri como em “12 Angry Men“. De qualquer forma, a presença de dinamismo é sempre uma questão a ser considerada não só na trama, no ritmo dos cortes e nos padrões gráficos da composição visual, a questão da ação é sempre algo a se considerar. Eis a grande questão de “Rear Window”: como tornar dinâmica a história de um homem ilhado em casa por causa da perna quebrada?
Parte do problema se esvai porque a adição de ação não necessariamente significa elementos drásticos freqüentemente associados à palavra, pode ser um tanto menos estapafúrdio. Também não significa algo simples, como apenas colocar os personagens para preparar o jantar, limpar a casa, dirigir ou caminhar pela praça. A genialidade de “Rear Window” é encontrar o meio termo perfeito para tornar o ambiente limitado da premissa — apenas um apartamento — algo que não se torna chato nos primeiros minutos. Por um lado, existem coadjuvantes com liberdade de movimento para percorrer o cenário e diversificar a monotonia, até levando o protagonista aleijado junto deles em alguns momentos. Por outro, a vida parada fica muito mais interessante quando ele procura movimento não dentro de sua casa nem nele mesmo, mas fora dela.
Sim, o conceito mais comentado a respeito de “Rear Window” é, de muito longe, o voyeurismo. Centenas de artigos certamente foram escritos sobre isso, seja focando neste filme ou considerando numa visão mais ampla, com a carreira toda de Alfred Hitchock em retrospecto ou com o cinema sendo uma forma de voyeurismo do espectador em relação à vida privada dos personagens retratados. As possibilidades são infinitas. Em termos práticos, isso funciona por meio do passatempo diário de Jefferies observando o amplo universo fora das janelas de seu apartamento, um pátio enorme reunindo os fundos de diferentes edifícios com vidas acontecendo independentemente uma da outra em cada andar e em cada apartamento. A verdadeira história de “Rear Window” não acontece na cadeira de rodas do personagem principal, e sim em todos os lugares visíveis a partir dela.
Em muitos casos, uma situação parecida seria limitada se não pela miopia do indivíduo então pela falta de mágica proporcionada por um ambiente fabricado com uma narrativa multifocal em mente. De que outra forma a vizinhança estaria aberta como um livro para quem quer que tivesse disposição o bastante para esticar a cabeça para fora da janela e ver o que está acontecendo no pátio? Ademais, o protagonista demonstrar tal vontade não determina que as coisas vão acontecer, não basta querer. Felizmente, essa é a vontade do roteiro, logo há toda uma teia de narrativas primária, secundária, terciária e assim por diante acontecendo fora da janela. “Rear Window” existe por causa de um buraco retangular na parede, um par de binóculos e uma câmera com lente telefoto, instrumentos de Jeff e, por conseqüência, do espectador em fazer parte de um ambiente que exala vida em cada canto observado. Os vizinhos desconhecidos de outros prédios que nunca serão visitados pelo personagem ganham apelidos, suas rotinas são observadas e o tédio ganha uma nova face quando as alegrias e os estresses dos outros são abraçados e compartilhados com si.
E não é só isso, a influência dos coadjuvantes não é apenas quantitativa. Sempre que possível, a direção faz o que pode para, por exemplo, exacerbar a beleza radiante de Grace Kelly a fim de criar um conflito potente a respeito da indecisão de Jeff a respeito de casamento. Ou então a enfermeira aparecer de vez em quando para dar um pedaço de sabedoria pedestre, embora com seu fundo de verdade, e levantar o rapaz de sua cadeira de rodas para ele receber sua massagem diária, circular o sangue a variar um pouco a ação. Tudo é preparado de forma que Kelly, quando apresentada pela primeira vez, seja realmente o avatar da beleza e algo para manter no fundo dos pensamentos enquanto uma suspeita de assassinato infecta o ar. Quanto à trama principal de “Rear Window”, chega a ser um pouco desestimulante falar sobre ela quando há tanto mais acontecendo ao redor dela, o que não significa que ela seja esquecida. Ainda permanece como a principal fonte dos momentos mais fortes da obra, aqueles que fazem o espectador temer pelas conseqüências de um plano ousado porque, afinal de contas, ele também está atado à sua própria cadeira sem poder fazer nada além de assistir de longe.