Já não sei quanto tempo faz que ouço falar de “Heaven’s Gate”. Sua reputação é facilmente comparável com sua duração de quase quatro horas e constitui um dos mais clássicos exemplos do ditado: “The bigger they are, the harder they fall”. Um texto inteiro poderia ser facilmente escrito sobre a história da produção, o eventual lançamento e todas as conseqüências do fracasso colossal da obra, que de fato teve uma queda tão espetacular quanto as ambições de Michael Cimino sobre ela. Mas é para isso que existe a página da Wikipédia e até um livro por Steven Bach detalhando minuciosamente como refilmagens, exageros e estouros constantes de orçamento criaram um fracasso exemplar na história do cinema. Os anos foram passando e as mesmas histórias sobre a obra foram contadas, recontadas e repetidas sem eu ter conferido ela em si. E, bem, o curioso é que o tal pior filme de todos os tempos, como alguns dizem, não é tão ruim assim.
Também não é o exato oposto disso, uma pérola subestimada em seu tempo e redescoberta anos mais tarde por uma audiência de consciência sociocultural diferente. “Heaven’s Gate” tem diversos problemas graves ao mesmo tempo que nenhum destes torna a experiência indigesta e totalmente desagradável, até porque existem outros elementos de muito bom gosto compartilhando o mesmo espaço. Assim, não é tão surpreendente que a avaliação recente tenha sido muito mais favorável que a recepção crítica e financeira inicial. A versão mais disseminada hoje é muito mais próxima da concepção original de Michael Cimino do que a colcha de retalhos lançada no cinema com 149 minutos. São 70 minutos a menos que a versão original, um tremendo corte, e mesmo assim é mais longa do que se vê no mercado. Será que neste caso a concepção original não é menos elegante e preciosa do que costuma se pensar quando se fala em visão artística?
Há sempre o entusiasta de cinema que sente os pelos das costas eriçarem quando escutam as palavras versão do diretor, teoria do auteur, visão artística, entre outros termos que exaltam a figura de um artista como vertente de idéias responsável por tudo o que se vê na tela. Não vou negar que é uma noção romântica e tentadora pensar que tal obra-prima é feita por tal artista e que tudo existe com a assinatura dele embaixo. O que pode existir é unificação e direcionamento de esforços em prol de um grande objetivo, usar recursos de áreas diversas para esculpir uma narrativa multifatorial, mas isso provém mais da competência do diretor como líder do que de algo que ele mesmo fez. Mesmo surreal em essência, tal noção só é agradável quando todas as peças parecem encaixar, ao passo que “Heaven’s Gate” representa o resultado da mesma idéia dando errado em vários sentidos.
O primeiro elemento questionável e talvez mais elementar é o enredo. A história gira em torno de James Averill (Kris Kristofferson), um rapaz graduado em Harvard que se torna oficial da lei e tem de resolver um conflito crescente em Johnson County. A cidade é cheia de imigrantes e pessoas buscando um pedaço de terra e uma cabeça de gado para começar a vida na América em constante expansão. No entanto, uma associação comerciária consegue apoio do governo para emitir mandados de execução destes cidadãos, agora considerados bandidos e degenerados. Sendo ele mesmo um oficial da lei, James se vê numa situação complexa com amigos de um lado da luta, do outro e no fogo cruzado entre eles.
Ou ao menos essa era a idéia. O lado interessante de encontrar um fracasso é conseguir enxergar também as pretensões originais e ver até que ponto elas funcionam antes de darem errado. “Heaven’s Gate” começa com uma seqüência da graduação do protagonista na universidade junto com Billy Irvine (John Hurt), um evento que mostra a amizade nutrida desde a juventude entre eles. Há um salto de 20 anos e James já está trabalhando como oficial da lei, encontrando outro amigo do passado, Nate Champion (Christopher Walken), participando do conflito do lado dos que querem praticar assassinato institucionalizado. Além disso, um triângulo amoroso complica mais as relações e cria um novo motivo para o conflito ser pessoal. Não é uma idéia ruim envolver o protagonista numa situação não tão preto no branco, evitando uma missão de objetivo claro e sem obstáculos.
Mas toda idéia deve ser colocada em prática em algum momento. Seguindo o princípio básico de que relevância é diretamente proporcional ao foco dado, “Heaven’s Gate” já começa com o pé esquerdo. Todo o trecho envolvendo a formatura dos personagens em Harvard envolve uma longa cena do reitor da universidade discursando para formandos e convidados com outro discurso completo do próprio Billy na seqüência e outras cenas com os rapazes fazendo bagunça em comemoração. E a formatura é sequer mencionada nas próximas três horas de filme. A própria amizade entre James e Billy só é resgatada muito mais tarde em uma cena que definitivamente não satisfaz todo o tempo em que a amizade estava sumida. O mesmo vale para o eventual atrito com Nate Champion, que até tem um bom motivo para acontecer, em primeiro lugar, mas se mostra faltante tão logo que uma conexão mais profunda é sugerida entre os dois. De onde ela surgiu mesmo?
O pecado capital de “Heaven’s Gate” é não investir seu tempo nas partes essenciais de sua história. Sugere-se que a presença de rostos amigáveis e queridos no conflito é um fator complicador, mas pouco se desenvolve a relação do protagonista com essas pessoas. Também se toca superficialmente no fato de ele ser uma pessoa da elite realizando um trabalho freqüentemente delegado para pessoas de classes baixas e, além de tudo, defender os interesses de uma parcela da população evidentemente oprimida. Qual a implicação de alguém de família rica assumir esse trabalho para si? Não se sabe por que James Averill escolheu esse caminho nem qual diferença isso faz para quem vê de fora. Enquanto essas perguntas ficam no ar, encontra-se seqüências extensas de jovens se formando, do protagonista patinando com seu interesse amoroso num grande salão e diálogos que freqüentemente não falam nada.
Mas nem tudo é ruim. Por mais que exista esse problema crasso no estabelecimento de prioridades da história, ela tem estrutura e direcionamento o bastante a ponto de ser compreensível e de partir de um ponto até chegar em outro. Não só isso, como os melhores momentos dela sugerem que existia uma obra-prima em potencial em meio ao caos narrativo de um roteiro mais preocupado com os detalhes irrelevantes do que com o resto, Funciona como alguém contando sobre uma visita a um ótimo restaurante e falando muito mais sobre a espera pelo prato do que sobre a refeição em si. O conflito climático é o exemplo mais claro disso: é um grande evento e bem executado, só não há muita preparação ou aquecimento para ele. É uma pena que se encontre peças que poderiam ter levado “Heaven’s Gate” aos céus se tivessem sido utilizados com melhor propósito. O fato de nenhuma atuação ser menos do que competente é a maior prova do mau uso dos atores e seus personagens na história.
Entre os acertos não há como esquecer da fotografia naturalista de Vilmos Szigmond evocando um lado pouquíssimo elegante do Velho Oeste. Embora não se possa dizer que outros filmes populares do gênero enfeitavam ou glamourizavam a realidade da época, vários deles evocavam imagens grandiosas através das tomadas icônicas do Monument Valley ou de cenários com cara de set de cinema. “Heaven’s Gate” traz a realidade do oeste americano como um antro de poeira e cheiro de madeira velha, um lugar que não pode ser chamado de aconchegante nem mesmo por aqueles com mais dinheiro e poder, todos acabando dormindo com os ácaros e as pulgas no final do dia. A imagem de luz invadindo ambientes por quaisquer frestas existentes, visíveis apenas por conta de todo o pó pairando no ar é e sempre será associada a “Heaven’s Gate”, independentemente de suas falhas. Uma identidade visual marcante é mais do que muitas obras podem se gabar, sem dúvida.
A escala de “Heaven’s Gate” é outro ponto facilmente perceptível, uma vez que é exaltado com freqüência e até sem bom motivo. É aí que parece que o estilo de Michael Cimino e a visão artística resultante se mostram pouco produtivas. Existem centenas de figurantes e dinheiro o bastante para gravar um plano aberto do povo da cidade revoltado em conjunto. Para quê? Nem sempre parece haver resposta e, não obstante, a longa cena com as centenas de figurantes juntos está lá. Em outros momentos, Cimino parece subverter as regras porque sim, vai contra o preceito básico da fragmentação ou extensão do tempo em prol da narrativa para obter uma cena mais naturalista sem justificativa para isso na história; um personagem demorando o tempo real para levantar da cama, pensar um pouco, tirar o porta-cigarros do paletó, colocar a mão no bolso da calça, pegar o isqueiro, esticar o braço lentamente e acender o cigarro de outra pessoa. Com quase quatro horas de duração, cada momento não deveria deixar dúvida a respeito de sua relevância dentro de uma obra com alto risco de ser cansativa, porém freqüentemente se faz o oposto e apenas se encontra falta de propósito. Definitivamente não se dá um bom motivo para o espectador gastar tanto de seu tempo.