As primeira coisas que ouvi falar do filme de Lego vieram de pessoas surpresas com a qualidade. Particularmente, acabei me deixando levar pelo preconceito e, achando que seria apenas um produto medíocre e bobão para vender brinquedos para crianças, não fui ao cinema para assistir. Quando era tarde demais para se arrepender, já não estava mais em cartaz e a postergação eterna tomou conta até que a continuação foi anunciada e o interesse se reacendeu. No mínimo, “The Lego Movie” mostra não ser nada como um produto medíocre e bobão, embora com certeza tenha tentado vender brinquedos para crianças no meio do caminho.
Lord Business, um terrível engravatado usando gigantes pernas mecânicas, finalmente coloca as mãos no Kragle, uma arma capaz de grudar o universo Lego inteiro no lugar para sempre. O feiticeiro Vitruvius tenta impedi-lo em vão, mas tem uma profecia revelada para si pouco antes de ser derrotado: apenas o Especial poderá obter a peça da resistência para impedir o universo de cair em desgraça. A única coisa que ninguém esperava era que Emmet Brickowski, o personagem de Lego mais ordinário de todos os tempos, fosse se descobrir como o escolhido para salvar o mundo.
Olhar para essa sinopse pode imediatamente acender o alerta do estereótipo da jornada do herói. Mais uma história entre uma centena de outras no mesmo ano seguindo os doze passos de Joseph Campbell ao pé da letra para estruturar a narrativa. Bem, não dá para dizer que “The Lego Movie” ignora completamente esse conceito, é mais apropriado dizer que ele o abraça plenamente e o vira de ponta cabeça de uma forma carismática e original. Certos passos e partes características deste modelo narrativo aparecem com um toque de distorção e de sátira. É necessário mesmo que haja uma profecia e o destino do mundo inteiro nas mãos de uma pessoa? Talvez não do jeito como se conhece. Sempre há alguma piadinha na espreita para tirar sarro em maior ou menor grau de toda a idéia do cidadão comum ser o salvador da pátria. A especialidade da narrativa é essa, nenhuma outra.
“The Lego Movie” enxerga em tudo uma oportunidade para fazer graça. A vontade de falar sobre todas é enorme, inclusive, mas isso só estragaria a experiência e o próprio humor da situação. Citar em texto sem dúvida alguma é o mesmo que resumir brandamente uma seqüência inteira baseada na expectativa de encontrar algo familiar ou algo explicitamente subversivo ao padrão e se deparar com uma recompensa — a tal “punchline” — propositalmente fraca ou decepcionante. A narrativa brinca com essa noção de universo grandioso, destino, profecia e herói escolhido constantemente e, ao mesmo tempo, o faz sem consistência. Parece negativo, porém faz parte da natureza da comédia da obra brincar com a expectativa do espectador e por vezes não entregar a sacada bombástica, espetacular e complexa em cima do material conhecido. O resultado freqüentemente é bem simples e direto ao ponto, não menos incrível por isso.
O próprio protagonista é o avatar dessa idéia. Emmet é aquele bonequinho de Lego que sempre vem nos baldes genéricos sem uma temática específica; chapéu e uniforme de construtor para ajudar a criança a criar a ilusão de que ela também é uma construtora de coisas com as pecinhas de plástico. Não sei o resto do mundo, mas eu só conseguia lembrar dos personagens de Lego se eles já fizessem parte de alguma franquia conhecida; é fácil lembrar das versões Lego de Anakin Skywalker, do piloto de TIE Fighter, de Obi-Wan Kenobi ou de todos os personagens que receberam jogos próprios. Pois bem, “The Lego Movie” escolhe uma dezena destes famosos e, mesmo assim, coloca um bobão qualquer no centro de tudo. A idéia de apresentar um herói questionável, por si, é espertinha, mas nada incrível. Incluindo a dublagem de Chris Pratt e as várias situações peculiares criadas pela natureza comum do personagem, só então se cria algo bem interessante. O mesmo acontece com todos os personagens famosos, que são afetados pelo filtro Lego de insanidade antes de dar as caras. Não é à toa que essa versão do Batman ganhou seu próprio e muito competente filme em 2017.
Em suma, a aventura progride mais ou menos do jeito que se espera. Com todas as brincadeiras em cima do clichê, “The Lego Movie” ainda segue um caminho bem direto ao ponto de jogar uma seqüência de obstáculos no caminho dos personagens até que eles eventualmente cheguem no momento de tudo ou nada. Isso não é um problema, é apenas uma estrutura dramática básica encontrada até mesmo em obras de outros gêneros. O que importa, então, é tornar a jornada empolgante. Disso não se pode reclamar. Ver as cenas se desenrolando na estética característica de um mundo inteiro feito de Lego é e sempre será um deleite. A fidelidade ao detalhe e às regras diferenciadas do universo escolhido, incluindo as limitações físicas inerentes, torna o que poderia ser apenas uma perseguição de nave em algo infinitamente mais interessante. Toda criança provavelmente teve um pouco de dificuldade de imaginar como seria um tiro de X-Wing quando o mais perto que se chega disso é uma pecinha colorida transparente na ponta da arma. Ver a mágica acontecer para além disso é efetivamente fantástico. Até mesmo a movimentação travada das perninhas de Lego torna-se um pedaço de originalidade, mais uma pequena peça do sucesso da estética geral da obra.
Depois de tantos comentários positivos e de ter assistido a “The Lego Batman Movie” antes, esperava um pouco mais de “The Lego Movie”. É um filme muito divertido, de tiradas sensacionais e idéias tão boas que eventualmente criaram uma identidade única e inconfundível usada em outros filmes do mesmo universo. Talvez não merecesse o Oscar de Melhor Animação, como tantos clamaram, mas ser esnobado de uma indicação já é demais. Faz menos sentido ainda a única indicação ter sido à música “Everything is Awesome”. Ela até é divertidinha e fácil de grudar na cabeça, nem de longe é um aspecto que eclipsa o sucesso da obra como um todo.