A pressão dos céus recai sobre as costas de Elizabeth I (Margot Robbie). Quase Literalmente. O conselho real se preocupa cada dia mais conforme a rainha fica mais velha e progressivamente indisposta a produzir um herdeiro para o trono inglês, o que coloca em risco a própria integridade da nação no futuro. Além disso, tal vaga na linha de sucessão se mostra uma oportunidade para a oposição católica de colocar um representante de sua religião no poder, assim frustrando a dominância protestante do poder. A chegada de Mary (Saoirse Ronan) na Escócia demonstra um agrave notável da situação politicamente delicada. A dama tem o objetivo bem definido de conquistar seu espaço dentro da corte de Elizabeth, disposta a unir forças e todas as ferramentas disponíveis para se estabelecer como uma posição de poder dentro do reino. “Mary Queen of Scots” é a disputa por poder entre mulheres tentando governar e mais, afirmar-se como figuras de respeito entre pessoas que as menosprezam por seu sexo.
Adaptações podem ser o diabo. Escolher um tema empolgante e apaixonante, inspirador de horas e horas de testa sangrando em cima de uma folha de papel é uma tarefa relativamente fácil. Um escritor que se preze deve ter um bom senso crítico, algo elementar não só para avaliar o próprio trabalho mas também um ponto de partida para identificar temas cativantes. As histórias e seus personagens devem tocar o escritor de alguma forma, fazê-lo sentir que sua experiência individual pode funcionar de alguma forma com o material. Todavia, é utópico dizer que o processo se resume a isso. Quem dera. Há tantos outros elementos mais chatos e tediosos e mecânicos envolvidos no processo. Muitas vezes a parte boa acaba sendo sacrificada se nenhuma saída criativa for encontrada. “Mary Queen of Scots” traz um exemplo perfeito desta dinâmica, mesmo que talvez essa não tenha sido a linha de raciocínio do roteirista.
Há a chance de este ser o caso, considerando que o responsável pelo roteiro é Beau Willimon, o criador da versão americana de “House of Cards”. Ou seja, é outra obra envolvendo jogos de poder e pessoas constantemente na espreita por uma brecha para subir a escada do sucesso, oportunistas buscando e forjando alianças na obstinação de cumprir suas ambições. A diferença está no contexto histórico, nos personagens e nos detalhes. “Mary Queen of Scots” é exatamente o mesmo conceito, só que aplicado à Grã Bretanha do Século 19. Se uma pessoa dispende esforço na criação de um seriado sobre um personagem ambicioso vivendo num ambiente imperdoável, é porque alguma parte dessa dinâmica competitiva o atrai. Roteirizar um longa-metragem sob termos parecidos é apenas o próximo passo lógico, só que com um importante porém na diferença de formato. “House of Cards” terminou com 73 episódios de cerca de 50 minutos, ou seja, mais de 60 horas para contar sua história. “Mary Queen of Scots”, por sua vez, tem pouco mais de 2 horas. Pode ser uma diferença problemática se a história não for formatada adequadamente.
É só pegar o exemplo de outros seriados sobre o mesmo assunto. “The Tudors” conta a história de Henrique VIII em 38 episódios e “Reign”, a mesma de “Mary Queen of Scots” em 78. Há conteúdo o bastante para contar ao longo de temporadas inteiras e isso pode ser um obstáculo notável caso seja compactado demais. O problema deste longa é justamente abordar um período imenso e resumir em poucas horas, anos e anos de eventos importantes da história britânica embalados à vácuo. É justamente o contrário de ter pouca coisa para contar em muito tempo, alguns poucos pontos avançando a trama entre longos trechos de nada. Aqui, cortejos se tornam casamentos em questão de minutos, exércitos são mobilizados e guerras terminam em uma mesma sequência. Anos se passam entre acontecimentos tidos como importantes para tornar a progressão da narrativa mais dramática. Faz sentido, pensando na teoria, exceto que isso traz um sentimento de pressa e levianidade para eventos que foram escolhidos por sua importância, em primeiro lugar. O que deveria ter relevância torna-se banal ao funcionar como apenas mais uma cena entre tantas outras.
Definitivamente é um ponto negativo da experiência. Nota-se que muitas decisões políticas — praticamente o único tipo de decisão aqui — simplesmente acontecem, ao invés de serem debatidas, analisadas e consideradas com toda a atenção e calma que um planejamento estratégico demanda. A não ser que todos os envolvidos sejam ótimos líderes, que fazem as coisas acontecerem na base da intuição e de decisões relâmpago. Não parece ser o caso. Entretanto, a adaptação deste conto de duas rainhas não é destruído por isso nem o roteiro é pavoroso ou inaproveitável. Aquém do potencial, sem dúvida; apenas funcional, coeso e dramaticamente pensado na forma atual. Os saltos temporais de acontecimento importante para acontecimento importante são organizados em uma estrutura que valoriza os pontos principais do conflito entre Mary e Elizabeth, o pilar vital da obra. Não dá para dizer que existe incompetência nesse quesito porque sua importância diante de todo o resto é conservada, assim como pode-se notar as clássicas curvas dramáticas em atividade. É como dizem: se a história complicar a vida na hora da adaptação, se o produtor exigir mudanças ou o diretor reescrever o roteiro por conta própria, é a existência de estrutura que evita desastres completos.
Essencialmente, “Mary Queen of Scots” foca na relação entre as duas rainhas em atrito — vide o título brasileiro, “Duas Rainhas”. Trata-se de um conflito diferente, tanto a fonte da melhor parte do roteiro como uma grande oportunidade de Margot Robbie e Saoirse Ronan extraírem um lado inesperado de suas personagens. A primeira parte funciona bem porque o atrito em questão existe de fato ao mesmo tempo que não é abertamente o tipo de conflito que se espera quando se fala na barbárie daqueles tempos. Existem momentos de violência, sim, mas estes são apenas uma faceta de uma oposição erguida de formas diretas ou não. Inclusive, a primeira parte até se prejudica com a facilidade de algumas ações — incitar guerra civil, por exemplo — ao passo que o eventual clímax do filme é o perfeito representante da relação estabelecida indiretamente entre as duas mulheres ao longo da história. É também o momento em que se tem certeza de que os maiores acertos definitivamente provêm das interpretações de Robbie e Ronan. Ambas impressionam e reforçam uma boa impressão com cada nova cena até que a culminação de tudo eventualmente cimenta o brilho das performances. É no auge delas que se percebe como ambas funcionam isoladas e juntas ainda mais magnificamente.
“Mary Queen of Scots” não é um filme incrível. Seu material de base, por outro lado, é uma mina de ouro para inúmeras abordagens focando em outras inúmeras tramóias e brigas dentro da corte. A amplitude de conteúdo é evidente e funciona tanto para bem quanto para mal: ao mesmo tempo que mostra como as possibilidades são infinitas, também mostra como tudo é recontado com pressa. Nem mesmo a afinidade que o roteirista provavelmente sente por um material de intrigas constantes supera essa questão. Neste caso, aglomerar tanto material em um veículo de duração limitada soa como a situação em que o formato pisa nos calos da história. Talvez houvesse uma solução criativa para isso, talvez não. Resta o fato de que a obra se prejudica principalmente em sua narrativa, mesmo com as atuações suprindo todas as demandas do roteiro e com o fino trabalho visto no belíssimo figurino.