A casa dos Graham tem problemas. A matriarca da família e mãe de Annie (Toni Collette) falece depois de tornar a vida de todos tão difícil quanto conseguiu em seus últimos momentos, aparentemente iniciando um período de tranqüilidade para todos. Mas é justamente o oposto que acontece. Eventos estranhos e até inexplicáveis começam a acontecer dentro da casa, afetando a todos e especialmente a Annie, que não sabe direito como lidar com a recente perda e muito menos com as novas bizarrices. Conforme o sobrenatural se funde com a insanidade, todos são arrastados nesta corrente decadente. Isso é “Hereditary” em algumas palavras.
A sinopse de fato não é nada de mais. Muito provavelmente foi ela que me deixou sem empolgação alguma para assistir a “Hereditary” na cabine de imprensa ou mesmo mais tarde. Foi depois de algumas recomendações pessoais e, finalmente, da indicação a Melhor Filme da Online Film Critics Society que finalmente fui ver do que se tratava. Posso apenas dizer que as descrições breves e superficiais por aí não fazem jus ao que o filme guarda, nem de muito longe. O ideal mesmo é assistir sem saber ou esperar nada, pois é possível ser pego de surpresa por certos eventos que servem como murros bem dados para deixar perfeitamente claro que este não é outro exemplo genérico de Terror. Não se reinventa a roda também. Alguns elementos provavelmente já foram vistos em outros trabalhos, mas definitivamente não como aqui, dispostos em uma história planejada até nos pequenos detalhes a fim das grandes viradas não serem gratuitas.
O problema de fazer as pessoas se interessarem por “Hereditary” ou mesmo de falar sobre ele é simples: depois de assistir, é complicado não pensar em todos os grandes momentos da história, que infelizmente estragariam a experiência se revelados. Conseqüentemente, omitir muitas informações torna difícil interessar os outros. Como não pensar na primeira grande cena, que subitamente eleva o interesse em uma questão de segundos? É uma daquelas cenas de repensar o gênero inteiro e em por que outros filmes não seguem o mesmo caminho de usar a violência e o choque como artifícios pontuais. Claro, cada obra com sua própria proposta; sendo o número de vítimas e a violência exagerada marcas de sub-gêneros como o Slasher. Mesmo assim, é surpreendente quão funcional é um roteiro que usa tão bem os momentos fortes a seu favor, conferindo a uma morte ou um ato violento um status relativamente próximo da vida real — ocorre esporadicamente, mas sempre com impacto forte.
Claro, é um exagero dos grandes dizer que um filme sequer chega perto de causar o mesmo impacto da morte de algum conhecido. A idéia é mostrar que menos é mais, seguindo a filosofia de economizar na quantidade sem diminuir a intensidade gráfica; isto é, diferente da idéia de que a sugestão de algo é mais poderosa do que uma representação concreta. A proposta de “Hereditary” não se limita à quantidade da violência ou à sua qualidade — como uma desculpa para mortes criativas, por exemplo — seu destaque existe por conta da inteligência por trás de seu uso. São cenas fortíssimas, chocantes até mesmo para uma época em que a violência se tornou algo banalizado e comum na maioria das mídias, seja televisão, cinema ou jogos. Isso só acontece, é claro, porque além do aspecto gráfico das cenas há também um certo apego do espectador aos personagens. Ao contrário de histórias com uma dúzia de personagens estereotipados, muitos desinteressantes, feitos apenas para somar número de mortes, há apenas quatro deles que realmente importam e alguns poucos coadjuvantes bem definidos.
Poucos personagens, número reduzido de choques a fim de obter impacto total… Tudo aponta para o roteiro como principal acerto de “Hereditary”. E de fato é ele que se exalta quando inicialmente começa calmo e intensifica o engajamento de uma hora para outra, mantendo o interesse em alta com esquisitices recorrentes, de maior e de menor grau, até deixar a grande questão na mente do espectador: para onde tudo isso está indo? Tem de haver uma boa explicação. Apenas um bom manejo de tom, freqüência e intensidade das cenas não serve se não há propósito orientando o caminho. Felizmente, o final deixa perfeitamente claro que a conclusão era planejada desde os pequenos momentos iniciais ao invés uma decisão tirada do nada para tentar adicionar uma camada extra a uma trama com várias bizarrices. Até existe um momento de liberdade narrativa conveniente e outro de exposição salvando a pele dos roteiristas, mas são coisas perdoáveis por haver margem quando se pensa um pouco a respeito.
Na execução, é notável também o papel dos atores para que “Hereditary” funcione. Se o papel não permite, há pouco que o melhor dos atores pode fazer. Menos personagens significa maior tempo de tela para cada um e mais espaço para cada ator fazer o melhor que pode, uma ótima notícia quando a trama abre as portas para o terror psicológico agir junto de todo o resto. Assim, cria-se uma nova dimensão para o terror existir em conjunto com a violência, o choque e o fator sobrenatural. Estes três elementos agem sobre os personagens como uma fonte constante de duros traumas e golpes psicológicos, os quais facilmente esmigalhariam a sanidade de qualquer um. De quebra, a unidade formada entre eles fornece qualquer explicação narrativa necessária quando as perguntas passam a ser feitas.
Condições surreais permitem que seja explorado um potencial emocional inalcançável em situações comuns. Afinal de contas, qual evento normal se equipara à experiência de encontrar o conteúdo de um filme de terror? Os melhores exemplos que flertam com o terror psicológico são os que conseguem extrair boas performances de seus atores e lhes dar certo estado psicológico ímpar. Toni Collette ilustra perfeitamente um misto de sentimentos reconhecidamente humanos com outros causados pelas condições peculiares. É uma insanidade tranqüilamente justificável por todos os eventos colocada junto de um resquício de suspeita em cima dela para que não seja apenas uma vítima das circunstâncias. Um toque de tridimensionalidade e preocupação com o outro lado da história que normalmente não se encontra.
O resto do elenco, por sua vez, chama menos a atenção por falta de espaço. Os outros personagens não são afetados da mesma forma pelos eventos, portanto reagem diferente, mas não com menos eficiência. “Hereditary” faz o que muitas outras obras, seja qual for o gênero, não conseguem ao estabelecer uma plano básico e executá-lo com solidez. O objetivo é trabalhar com poucos personagens, doses controladas de choque e uma história que consegue combinar tais elementos em um grande todo, que justifica a existência das menores cenas e das grandes. Ademais, um elenco irreprovável e uma direção contida, que não se deixar levar por artificialidades, resultam em uma obra que reconhece as ferramentas mais básicas de uma boa narrativa, muitas das quais não exclusivas do gênero Terror.