Eis uma história absurda: Ron Stallworth (John David Washington) é o primeiro policial negro da história da cidade de Colorado Springs. Nenhum outro ocupou o posto antes dele, talvez porque o racismo na polícia era tão enraizado que ninguém sequer pensou em se candidatar para a vaga. Mas Stallworth consegue o emprego, impressiona todos e ainda consegue um feito sem precedentes: infiltrar-se na Ku Klux Klan, nada menos que a organização número um em racismo e hegemonia branca. Como um negro conseguiu entrar numa organização que odeia negros parece ser um mistério dos mais prepósteros, fruto de uma imaginação empolgada. Mas não, “BlacKkKlansman” é inspirado em umas porras bem, bem reais, como os títulos iniciais dizem.
Esse é o tipo de história que sem dúvida alguma rejeitado pelas pessoas e principalmente pelos executivos de cinema se não fosse verdade. Quem acreditaria nela? Seria o mesmo que dizer que “Django Unchained” é um retrato sério e fidedigno da vida no Velho Oeste em vez de uma aventura exagerada, ultra-violenta e até caricata nos Estados Unidos no Século 19. A peculiaridade e absurdez são as mesmas de uma ficção, neste caso ainda mais efetivas pelo fato de tudo ser verdade. Provar veracidade ou qualquer outro ponto não está na lista de prioridades de “BlacKkKlansman”, cuja preocupação com fatos está ligada quase exclusivamente para criar o muito bem-sucedido humor .
“BlacKkKlansman” foi diferente do esperado. Se existe algo como pecado de cinema, então um dos meus foi nunca ter assistido a nenhum filme de Spike Lee. Vários de suas obras, como “Do the Right Thing” e “Malcolm X”, estão na lista de espera há tempo demais até que seu trabalho mais recente mudou o status. Já havia ouvido falar muito da personalidade forte do diretor e seu reflexo em ativismo político. Uma série de brigas, por exemplo, começou ainda em 1992 quando Lee criticou o uso da palavra nigger em “Jackie Brown“, filme inspirado pelo movimento de blaxploitation dos Anos 70. Elas continuaram nas décadas seguintes, tendo até mesmo um episódio recente com o lançamento de “Django Unchained” com Spike Lee criticando-o antes mesmo de assistir. Quando o assunto é étnico, é comum ver os ânimos se exaltarem.
Assim, era de se esperar que a história de um negro encarando a mais conhecida organização racista de todos os tempos teria, no mínimo, um pouco da empolgação agressiva aqui. Há quem diga que a ficção é uma forma perfeita de dar o troco em que merece sem a dor de cabeça que viria de outra forma, então eis a oportunidade perfeita de mostrar um negro fazendo isso contra racistas assumidos. Contudo, o que se vê não é aquilo que se repete infinitamente pela internet quando pessoas fantasiam socar algum famoso de quem discordam ou plenamente odeiam, que dizem que seriam capazes de matar por suas causas nobres sem achar que haveria algum problema moral envolvido. Spike Lee passa longe disso e é incrivelmente moderado ou, no mínimo, muito bem-sucedido em converter seus sentimentos fortes em comédia.
Ser direto não é a única forma de fazer uma crítica. Assim como um drama bem executado pode elucidar a dor de um povo inteiro através da situação de um indivíduo, é possível também ser pungente usando o sarcasmo. Esta é a arma principal de “BlacKkKlansman”: representar situações como se tudo fosse absolutamente normal e aceitável. A diferença é que os padrões dos Anos 70, especialmente ligados ao racismo, eram bem diferentes, portanto o normal apresentado pelo filme é visto como inaceitável pela audiência atualmente, que logo se vê rindo da situação porque ninguém do outro lado da tela está incomodado como ela. O racismo de antigamente, muito mais descarado que hoje, existe como uma aberração temporal e se faz notar como aquela pessoa que nunca superou os maus e velhos hábitos depois de anos. Os problemas de atitudes estão tão visíveis que é impossível não sentir um pouco de vergonha alheia dos personagens ou rir deles.
Outro ingrediente essencial para o humor de “BlacKkKlansman” funcionar é o elenco. Situação por situação, palavras por palavras até podem funcionar, mas às vezes não é o bastante, como quando a melhor piada do mundo cai nas mãos de uma pessoa que não sabe contar piadas. Felizmente, John David Washington dá um show como o protagonista bem-humorado da história, sempre demonstrando a sensibilidade necessária para tirar sarro das coisas e sair por cima. É ele quem está mais próximo da audiência, acima dos preconceitos das pessoas ao seu redor e, surpreendentemente, parcimonioso a ponto de enxergar quão longe é ir longe demais. Fazer parte de uma minoria não é justificativa para posturas radicais e ele defende esta posição por saber que é o caminho mais inteligente, muito embora não seja o mais romântico. É este o ponto mais impressionante e inesperado, levando em consideração o que li sobre o diretor.
A moderação não dura para sempre, contudo, o que não quer dizer que ela é inapropriada. Os momentos finais trazem a pior parte do mesmo racismo que foi combustível de comédia até então, uma montagem documental de cenas recentes, especialmente em Charlottesville. Essa súbita mudança de tom chega na melhor hora possível, sem risco de anti-clímax depois que a narrativa principal já disse tudo o que queria. É, inclusive, uma última virada em ótima hora depois da conclusão relativamente morna da trama principal de “BlacKkKlansman”. Apenas uma dose de realidade crua em meio ao que pode ser chamado de realidade cinematográfica, aquela que só existe no cinema.
Talvez minha leitura sobre o trabalho de Spike Lee tenha sido errada. É possível que a impressão resultante de repetidas notícias das brigas e sentimentos fortes sobre política tenha transbordado na minha expectativa sobre seu trabalho. Mas também não há como afirmar nada sobre o que veio antes porque o repertório de um artista muda muito, especialmente em 30 anos. De qualquer forma, “BlacKkKlansman” se mostrou como uma experiência divertidamente diferente sobre um tema em alta, mesmo não sendo nada incrível. Para uma época de altíssima sensibilidade, foi interessante ver o público abraçando o sarcasmo e o humor tão abertamente.