Filmes de terror vez ou outra surpreendem. Às vezes porque algo realmente bom é lançado em meio a dezenas de outros medíocres ou ruins, às vezes porque se arranja uma idéia peculiar para alimentar uma história do gênero. “Christine” é um bom exemplo desse segundo modelo, pois o vilão da história deixa de ser um assassino de capacidades sobrenaturais para ser um carro. É quase como o filme do pneu assassino, só que numa época em que ainda não se tinha chegado tão longe nas idéias curiosas para o Terror. Dirigido por John Carpenter, o mesmo responsável por “Halloween” e “The Thing“, o conto do carro assassino mostra que não há muito por trás de seu status cult.
Em 1958, um Plymouth Fury vermelho está para sair da linha de produção. É o único carro vermelho entre tantos outros beges sem graça e chama a atenção de todos quando passa. Mas há algo estranho com esse carro: ele tem um ar de maldade e até uma personalidade própria. Seu dono anterior enfrentou o inferno com ele antes de morrer e passá-lo para frente para Arnie Cunningham (Keith Gordon). Ele é um garoto nerd de ensino médio e todo atrapalhado nas interações sociais, especialmente com as garotas. Mas tudo isso muda conforme ele se vê mais e mais obcecado com seu novo carro.
Já devo ter dito isso incontáveis vezes, mas cada gênero tem características próprias que ajudam o espectador a saber o que procurar quando for assistir algo de um ou de outro. Buscar profundidade e drama em um filme de ação é algo que não soa natural, assim como ver um Romance e esperar por adrenalina ou violência não faz sentido. Dessa forma, os padrões para avaliar cada tipo de obra variam conforme seu gênero, embora não sejam regras escritas em pedra. Sempre há aqueles exemplos raros que transcendem seu formato e surpreendem por fazerem isso organicamente. “Christine” se encaixa no grupo dos que não tentam sair daquilo que se espera, aproveitando os clichês e as colheres de chá, por assim dizer, que vêm no pacote sem necessariamente fazer um bom trabalho no lide de conteúdo familiar.
Seguir essa filosofia não é um problema em si. Também não é uma decisão ambiciosa ou criativa, mas nada que afete o resultado final se a execução é de bom gosto. Esperar por uma história complexa e personagens bem escritos não quer dizer que qualquer coisa é aceita em seu lugar. “Christine” é uma daquelas histórias que tem uma idéia mais ou menos interessante e chama a atenção por isso. E só. É de se imaginar que em 1983, quando Jason Voorhees e Michael Myers estavam em seus terceiros filmes, a idéia de um carro clássico com alma assassina venderia bem. Já é uma boa distância daquilo que eventualmente se tornou conhecido como a fórmula Slasher, mas será que é uma variação bem executada, além de bem-vinda? Com a curiosidade acerca do conceito vem junto uma preocupação sobre seu sucesso.
Apesar de não ser um desastre completo, “Christine” deixa a desejar na hora de colocar em prática sua idéia mirabolante. Uma crítica não é espaço para dizer o que funcionaria melhor ou o que o autor faria de diferente e não é essa a intenção. Ainda assim, é difícil não pensar em ao menos uma dezena de formas diferentes de como fazer a história funcionar. Uma mudança de tom, por exemplo, parece uma alternativa interessante para tirar o caráter quase ridículo do longa se levar tão a sério. Não que seja o exemplo perfeito, mas “Re-Animator” e seu humor negro trazem uma leveza ao roteiro, que dá um pouco mais de espaço para atuações caricatas e exageradas como a de Jeffrey Combs. Levar-se a sério quando se tem um material pobre em mãos é pedir para não ser levado a sério e pior, criticado por presunção ou por simples mau gosto.
É exatamente isso que se encontra aqui. Por vezes é incrivelmente tosco como o desenvolvimento dos personagens é incrivelmente limitado ou previsível. Alguns simplesmente não mudam ou têm uma função clara desde a primeira cena em que aparecem. Assim, poder-se-ia argumentar que isso é aceitável no Terror, gênero em que frequentemente personagens são feitos para morrer e alguns poucos para durar até o final. Contudo, há a questão de “Christine” se levar a sério e, aparentemente, querer que o espectador acredite no arco de um nerd totalmente estereotipado se tornando descolado porque compra um carro do mal, o qual o influencia até chegar num ponto facilmente adivinhável. É o equivalente a forçar empatia com alguém que já se sabe que é bidimensional desde o começo.
Para não parecer que tudo dá errado, existem alguns pontos altos ocasionais. A sensação de que se está abordando o conceito direito surge quando Christine finalmente mostra suas cores verdadeiras e assume o papel de carro do mal, principalmente quando John Carpenter abre mão de qualquer amor possível pelo veículo e faz coisas como atear fogo nele, o arrebentar pelo menos umas três vezes e fazê-lo bater nas coisas como se fosse um videogame. O problema é que frequentemente Carpenter não aproveita totalmente o que tem em mãos e executa momentos potencialmente bons de forma bastante decepcionante, quase anticlimática de tão simples. Pior ainda, outros momentos mostram como o conceito central da obra — ou a criatividade da sua representação — é limitado, principalmente por ir forçar a barra nas formas como um carro pode tentar matar alguém.
No geral, “Christine” é melhor e pior do que poderia ter sido ao mesmo tempo. Assim como é fácil imaginar uma repetição dos piores momentos, como o carro tentando matar uma pessoa de jeitos patéticos, é também fácil imaginar um tom mais leve guiando o filme. Talvez resolveria adicionar um pouco mais de ousadia em tornar o carro uma máquina de matar e alguns toques de violência ao invés da realização suprimida e às vezes praguejada por problemas de Direção e Edição. Ainda é uma experiência possível de acompanhar sem cansaço ou tédio, mas não muito mais que isso.