A vida é feita das pequenas coisas. Quem já não ouviu essa frase dezenas de vezes sem concordar realmente? Afinal de contas, não há como dizer que uma caminhada vespertina é melhor que uma viagem internacional ou que comprar um carro é menos empolgante que uma revista em quadrinhos. Pensando assim, a resposta é bem clara. Mas não há como descartar conquistas e momentos pequenos só por conta de sua escala, eles também fazem parte da vida e em número muito maior. Assim, é muito feliz o papel da arte na representação e valorização destes supostos detalhes, que podem transformá-los e dar-lhes significado em um nível pessoal, com a audiência compreendendo por que deveria se importar com aquilo ao invés de procurar algo de grandeza maior. “Ordinary People” é um perfeito exemplo do que se pode fazer com esse tipo de conteúdo.
Os Jarrett são a típica família de subúrbio dos Estados Unidos. Dois filhos no ensino médio em breve indo para a universidade, casa com gramado verde, jantares na casa do vizinho, café da manhã em família antes da escola e tudo mais. Há apenas um importante porém: um dos filhos falece durante um acidente de barco. A rotina se mantém a mesma ou, no mínimo, tenta muito permanecer inalterada, mas os cortes são profundos demais para ficarem suprimidos por muito tempo. Ninguém sabe melhor que os Jarrett que o peso em suas costas é constante e a mais significativa parte de suas rotinas.
É como o título indica: “Ordinary People” fala de pessoas comuns. Ninguém é extraordinário ou conduz uma vida incrível, todos são gente normal. Claro, não é como se o foco da obra fosse meramente dar importância aos fatos pequenos, como curtir um cappuccino com misto quente num dia frio depois de uma entrevista de emprego malsucedida. Os personagens envolvidos fazem mais do que simplesmente seguir suas vidas sem que algo significativo aconteça. Há algo que aconteceu em suas vidas e continua acontecendo para torná-los interessantes, gente normal cujos conflitos não fazem parte do cotidiano comum ao mesmo tempo que não são automaticamente extraordinários. Tragédia e luto são, de certa forma, freqüentes. Toda família eventualmente perde avôs, pais, animais de estimação e às vezes irmãos e amigos. É natural e faz parte do ciclo de vida. O sentimento de luto é compartilhado pela maioria das pessoas em algum momento da vida e nem por isso é menos doloroso ou fácil de aceitar.
Não seria “Ordinary People”, então, uma história envolvendo coisas sensacionais? Não necessariamente. Isso porque o estilo da direção e das performances é notavelmente naturalista, sem preocupações com super-dramatizar qualquer coisa. O fato da trama começar com o conflito já corrente mostra isso perfeitamente: a tragédia deixa de ser tratada como um ou o ponto de virada para fazer parte do contexto pré-filme. O grande trauma acontece antes de tudo e cede o foco às suas consequências afetando a vida comum, exceto pelo fato de que o comum desta família em particular não é estereotipado; a abordagem contida favorece a despretensão das interpretações e da situação enfrentada pela família no geral. Honestidade é exatamente o que a história demanda, assim como pessoas que passam por algum trauma ou perda não querem ser tratadas excepcionalmente por causa de tal fato.
É frequente achar que aqueles que passaram por uma situação difícil querem ser consolados ou tratados como alguém digno de pena, sendo que estes normalmente querem ficar em paz e enfrentar seu próprio processo de dor e recuperação. É isto que se vê em três formas diferentes no trio de personagens principais de “Ordinary People”, nenhuma surpresa sabendo do tratamento honesto da obra como um todo. O exemplo mais evidente vem de Timothy Hutton interpretando o filho da família, Conrad. Era ele quem estava no barco com o irmão e também quem tinha mais proximidade com ele. Tal contato resulta na eventual cicatriz enorme que ele porta sem muito orgulho e com muito ardor, aquilo que bloqueia e atormenta ele diariamente. Em outras palavras, Conrad entra no papel do traumatizado, atormentado, afetado e qualidades afins.
Certamente é diferente de seu pai, Calvin (Donald Sutherland), que está sempre tentando buscar uma forma de consertar as coisas e, acima de tudo, entender o que acontece ao seu redor, já sabendo que nem todas as pessoas pensam e enfrentam situações como ele. Ou mesmo de sua mãe, Beth (Mary Tyler Moore), que depois de tanto tempo não sabe direito o que está sentindo ou se está agindo corretamente. “Ordinary People” se beneficia principalmente da forma como estes três elementos se relacionam com o mundo exterior e entre si, principalmente. O primeiro grupo não pode sonhar em afirmar que sabe o que acontece com cada um da família e nem mesmo os membros dela podem tentar fazer o mesmo. Família não significa compreensão automática, imediata e incondicional. É principalmente pela falta de comunicação clara e explícita que as coisas acontecem; nem todos falam a mesma língua ao lidar com um mesmo problema.
É bom falar pouco sobre essas relações complexas e a representação multifacetada do sofrimento em um contexto familiar — tanto no sentido de conhecido como no contextual. Mesmo “Ordinary People” não sendo um filme de revelações e viradas, é uma experiência melhor absorvida da maneira mais crua possível, sem interpretações e dissertações sobre a personalidade de cada personagem. É justamente o processo de conhecer cada um conforme eles se relacionam com outras pessoas que se descobre a dinâmica atuante e torna o filme tão bom. Sem depender dos fatos propriamente ditos, a história se mantém sólida por conta do elo emocional surpreendentemente bem concebido. Ele opera em dois campos: no mais literal, entre audiência e os personagens, com o primeiro se importando com o último; e no da fluidez emocional, a ligação entre a entonação de uma seqüência com a próxima dando liga e união à obra como um todo. O espectador não se encontra preocupado com o que acontecerá a seguir, mas levado em uma corrente sentimental complexa que vai de um sentimento até o próximo e dá a oportunidade de compreender de fato a esfera emocional em ação na família Jarrett.
Não, “Ordinary People” não trata de banalidades ou de irrelevâncias contidas no dia a dia. Sua história não busca o extraordinário e o sensacional por si, como faria se trabalhasse com eventos de grandeza considerável. A abordagem desce até o plano das pessoas ordinárias e acompanha o que acontece no contexto mais normal de todos quando algo entra no caminho e a rotina se modifica, aglutinando o trauma de forma evidentemente patológica. Pelo sucesso da obra, que pode ser facilmente colocada entre as melhores da história do cinema, só se pode congratular a espetacular estréia de Robert Redford na cadeira de diretor e o elenco; de Donald Sutherland como alguém que aparenta genuinamente se importar e se relacionar transparentemente com as pessoas importantes para ele até Mary Tyler Moore e as travas psicológica tão evidentes quanto envoltas em mistério e negação.