“Ossessione” é conhecido principalmente por ser o primeiro filme do Neo-Realismo Italiano, movimento que fez bastante barulho por exacerbar a realidade dura enfrentada pelo cidadão comum durante a guerra e após ela. Trechos da rotina freqüentemente ignorados pela arte tornaram-se parte de histórias ambientada em cenários familiares, ganhando atenção nas mãos de cineastas como Roberto Rossellini e Vittorio de Sica, ao passo que foi Luchino Visconti quem deu o pontapé inicial no movimento. E não é só isso. O filme é, curiosamente, uma adaptação de “The Postman Always Rings Twice”, que também foi adaptado em 1946 por Tay Garnett como um Noir do período clássico. Com isso, há quem questione a classificação neo-realista por conta do material base, porém isso pouco importa. Visconti adapta este conto de paixão e assassinato com sua própria assinatura única.
Gino Costa (Massimo Giroti) é um andarilho com muito tempo nas mãos e pouco para fazer. O resumo de seus dias é vagar de um lugar até o próximo sem buscar nada em particular, mas isso muda quando ele acaba tendo de descer do caminhão de onde pegava carona e conhece um restaurante de beira de estrada. Lá, ele encontra Giovanna Bragana (Clara Calamai), a jovem esposa do enorme e escandaloso Giuseppe Bragana (Juan de Landa), e se apaixona instantaneamente. Gino arranja um jeito de trabalhar para o dono do restaurante e ficar perto da moça, o que alimenta um relacionamento proibido com perspectivas fatais.
Mais curioso que qualquer tipo de fama que “Ossessione” e a adaptação americana, “The Postman Always Rings Twice“, possuem é o contraste enorme entre duas obras que usam a mesma história como base. Olhar para as duas é ter uma boa noção do que era o cinema americano e o cinema europeu — ao menos na época — como cada contador de histórias abordava o mesmo conteúdo e construía a identidade geral do cinema de seu território. A premissa é exatamente a mesma, com o andarilho esbarrando na jovem esposa de um homem claramente mais velho que ela e eventualmente entrando num romance perigoso. Mas enquanto a adaptação americana parece mais preocupada com engrandecer o mesmo conceito e levar infidelidade ao patamar de um plano calculista e até incluir um pouco de drama de tribunal no desenrolar das coisas, a versão italiana prefere manter o pé no chão.
Isso significa mudar toda a ambientação para que se encaixe na Itália da Segunda Guerra Mundial. O restaurante transforma-se numa cantina no interior do país; o andarilho realmente demonstra sua situação precária em roupas batidas e sapatos rasgados; a rotina é um tanto mais parada e inclui coisas que dificilmente são vistas num suspense, mais apropriadas a um drama no formato estudo de personagem. Desta adaptação próxima da realidade surge a alegação de que “Ossessione” abriu as portas para todo o movimento, por encaixar pedaços do cotidiano na ficção e fazê-los trabalhar a favor da história, evitando que tal transferência de contexto soe esquisita ou incompatível com as intenções originais do material-base. Afinal, existem poucas coisas piores do que uma adaptação mal concebida, especialmente tratando de uma obra de orçamento bem menor que uma produção americana, por exemplo. Nestes casos, é difícil esconder que faltou dinheiro e fizeram como possível.
Mas de que tudo isso importa? Tudo bem, “Ossessione” pode ter sido o primeiro filme neo-realista por conta de todo o trabalho na reambientação da história original. Qual diferença isso faz na narrativa? Ajuda de alguma forma? Sim e não. Quanto aos aspectos positivos, o realismo da história humaniza seus personagens e dá mais credibilidade aos eventos; menos do ar cinematográfico ambicioso de tentar levar um conflito cada vez mais alto e incluir tipos diferentes de problemas somados aos originais. Quando Gino chega na cantina dos Bragana, ele realmente não quer nada com nada. Sua personalidade errante mostra solidez quando ele não se deixa seduzir já no primeiro momento por nada, nem pela perspectiva de estabilidade — o exato oposto do que ele vive — nem pela própria Giovanna. Por si, essa melhor construção do personagem já corrige alguns problemas de “The Postman Always Rings Twice“, no qual tudo acontece muito rápido e artificialmente, sem muito peso.
Tais toques da vida banal resolvem a questão de conhecer os personagens e suas personalidades mais a fundo, enquanto a escrita e caracterização dos personagens denota maior integridade. Gino está perigosamente perto de ser um mendigo, porém demonstra porte físico e fisionomia belas, aspectos que são explorados e usados como razão para Giovanna se sentir atraída. Existem poucas coisas que falam mais alto que a atração sexual quando esta inflama. Ademais, há tempo para conhecer o elenco melhor e para as coisas acontecerem gradualmente — 20 minutos a mais — mas faltam alguns outros detalhes. O material certamente depende de personagens fortes para funcionar, aspecto que vale também para a direção de momentos cruciais da trama, como pontos de virada, clímax e conclusão. “Ossessione” acerta na primeira parte sem poder se gabar da segunda. Justamente quando a história poderia subir um degrau de tensão para algo além da sexual entre os protagonistas, a narrativa deixa a desejar.
Dessa forma, a experiência parece por vezes estar sempre no mesmo nível de conflito, sem subir e, felizmente, sem descer, que seria um regresso infeliz. Especialmente nos momentos em que realmente importa ter um pouco mais de ambição, encontra-se uma falta dela. É compreensível que “Ossessione” tem uma abordagem mais centrada no real, porém um pouco de magia cinematográfica nesses trechos certamente não estragaria sua identidade formada ao longo de inúmeras outras cenas. Surge, então, uma última divergência com a versão americana: a falta de um final forte. Em seu lugar, fica apenas a negativa impressão que faltaram recursos para algo melhor.