Brian Sweeney Fitzgerald (Klaus Kinski), chamado de Fitzcarraldo pelos conterrâneos peruanos, tem um sonho: construir uma grande casa de ópera no meio da selva. Ele acredita que um toque de classe e arte pode fazer muito pelo crescimento de uma civilização, então aposta que sua empreitada será a chave para que um modesto vilarejo de exploração de látex se torne um centro comercial. O detalhe é que ninguém leva seus planos a sérios além de sua fiel esposa, Molly (Claudia Cardinale). As pessoas que poderiam fornecer o financiamento necessário riem, tiram sarro e sequer consideram a possibilidade. Brian, sem se deixar abalar, quer fazer o possível e o impossível, agarrando sem pestanejar uma oportunidade arriscada, mas possivelmente lucrativa, que pode finalmente trazer o que ele quer.
Muito antes de assistir a “Fitzcarraldo” já tinha gravada na mente a imagem de um gigantesco barco a vapor sendo carregado morro acima. E muito antes dessa imagem ser familiar como é hoje, pessoas comentaram com certa frequência que o longa era uma obra prima de Werner Herzog. Confesso que ao assistir duas de suas produções, “Nosferatu: Phantom der Nacht” e “Aguirre, der Zorn Gottes“, imaginei que estivesse conhecendo alguns de seus trabalhos menores e não tão aclamados. Pensei que os peixes grandes ainda estavam por vir. Curiosamente, o que encontrei aqui foi um retrocesso em vários sentidos. A tal obra-prima falhou em mostrar razões plausíveis para tanto amor.
Tempestade em copo d’água é uma expressão usada quando uma pessoa faz um alarde desproporcional ao evento em questão. Alguém termina um relacionamento de 3 meses e acha que morrerá de amor; uma pessoa acredita estar com câncer terminal nos primeiros sintomas da gripe; entre outros exemplos. Uma analogia relativamente próxima seria o próprio “Fitzcarraldo”: a execução desproporcional de uma trama concisa. Totalizando 158 minutos, a obra de Werner Herzog usa o conto de um empreendedor ambicioso, determinado e até um pouco psicótico sem render resultados satisfatórios. E não porque encontrei algo diferente do esperado ou desejado, mas porque mostraram muito pouco em muito tempo e às vezes absolutamente nada. Enquanto a idéia por trás de uma boa história é manter o espectador atento e sem pensar nas estruturas e artifícios dos bastidores narrativos, esta aqui passa um tanto longe ao frequentemente proporcionar o oposto .
É apenas natural que o espectador busque algo para prender sua atenção na falta de estímulo ou de tentativas bem-sucedidas de capturar seu interesse. Ele começa a divagar e pensar em quaisquer outras coisas diferentes das que o cineasta deseja, desde adivinhar precocemente onde a história quer chegar até algo para comer mais tarde. Essa brecha é aberta para muito além do aceitável em “Fitzcarraldo”, escancarando o conceito de brevidade ao mesmo tempo que pisa em cima da objetividade. Desnecessariamente estende a trama até beirar as três horas e faz a experiência perder a graça cedo demais. É como se Herzog começasse a contar uma piada e demorasse 45 minutos até chegar na parte engraçada, ponto em que o ouvinte já nem sabe se era um português ou um argentino que estavam no avião.
O pior de tudo é que a piada tinha tudo para dar certo. Separando as partes que não importam, tirando a gordura e polindo as arestas mais grosseiras, “Fitzcarraldo” tem uma história potencialmente boa. Começa com um homem e seu sonho, que enfrenta forte resistência externa e encontra acolhimento na esposa. As possibilidades se abrem um pouco, de forma indireta, e dão o empurrão necessário no protagonista para que este finalmente ache que está mais próximo de conseguir o que quer. Em suma, alguns movimentos narrativos podem ser notados nessa premissa: a denotação do sonho; da impossibilidade de alcançá-lo; da obsessão do protagonista; da criação de uma chance pequena de sucesso; e da jornada para aproveitar a chance. Assim, não dá para acusar o diretor de ignorância sobre estrutura narrativa porque ela está ali; o esqueleto segue bem de perto os preceitos teóricos sobre roteiro. Novamente, o problema é o tempo que se demora entre estes pontos, os sete mares entre Brian Sweeney Fitzgerald receber sua primeira recusa e descobrir uma saída.
Esse é um tempo que poderia ser usado para desenvolver a personalidade de Brian, por exemplo. Quais seriam os motivos reais por trás de construir uma ópera no meio da selva? Poderia ser uma ilusão de grandeza, um elitismo inconsciente nascido da inveja de sempre ver pessoas acima dele na hierarquia social; gente com mais dinheiro, status, respeito e reconhecimento. Ou quem sabe explorar os limites da sanidade dele em sua odisseia, a obsessão levando-o a abusar do amor incondicional de sua mulher e tratá-la como ferramenta objetal de seus objetivos egoístas. No máximo, essas possibilidades são sutilmente sugeridas. Com certeza não diria que são abordadas diretamente pelo enredo e exploradas a fundo, o que é uma pena quando tudo isso poderia ser uma forma de preencher os espaços vazios de “Fitzcarraldo” e enriquecer a experiência imensuravelmente. Poderia ser algo maior, mas é apenas uma versão alternativa de “Äguirre” com 1 hora a mais.
Contudo, seria injusto dizer que “Fitzcarraldo” é apenas potencialmente bom, que demonstra boas idéias e uma execução terrível e fim. A história tem trechos bons e a progressão planejada por Herzog funciona, apesar de toda a lentidão. Não funciona bem ou extraordinariamente, longe disso, mas não deixa de ser impressionante como a odisseia é bem-sucedida na transição entre dois pólos bem distantes. O desenvolvimento inerte deixa bem claro que a situação do protagonista é precária e que as possibilidades vão de quase nada a nada. Tudo que dá errado durante o trajeto só reforça o sentimento de fracasso e auto-decepção, o que leva o espectador a acreditar que tudo se trata de uma derrota dolorosa e visível para todos menos menos ao protagonista. No entanto, a situação muda e finalmente parece ter algo cativante engatilhado.
É então que “Fitzcarraldo” brilha, quando as imagens mais famosas da obra dão as caras e mostram a riqueza do cinema ousado, corajoso e até meio insano de Werner Herzog. As melhores histórias de produção também surgem aqui: a refilmagem de mais de 40% do longa porque o ator principal pegou disenteria, a participação deletada de Mick Jagger, de Grande Otelo e Milton Nascimento, entre outros fatos. Contudo, nada disso se compara à proeza de realizar um ato cinematograficamente tão ambicioso que faz o espectador mudar de opinião sobre as perspectivas de sucesso de protagonista. Momentaneamente. O ápice do filme surge no clímax do perigo, da insanidade, da ousadia e da ambição com a empreitada de arrastar um barco de mais de trezentas toneladas usando apenas a engenharia rudimentar disponível numa selva peruana. Só há um porém: por mais interessante que o feito seja, Herzog se descreveu como Conquistador do Inútil em relação ao evento. Faz sentido, já que seu sucesso nem de perto eclipsa outros deslizes.