Talvez seja injusto pensar sobre “À bout de souffle” em termos de “Jules et Jim“, pois este último foi lançado dois anos depois da obra de Jean-Luc Godard ter iniciado a Nova Onda Francesa — também conhecida como Nouvelle Vague. Talvez não, considerando que foi o próprio François Truffaut quem escreveu o roteiro. De qualquer forma, acredito que existam ligações não só autorais mas também temáticas para que uma ponte seja estabelecida entre os dois, uma que mostra como conceitos e idéias similares evoluíram com o tempo e deixaram predecessores para trás. No final das contas, importa tanto assim quem começou um dos movimentos mais conhecidos da história do Cinema? Sim e não. Considerando valor histórico e factual, sem dúvida mérito deve ir onde é devido. Só não diria que isso é uma razão sensata para afirmar que o filme é objetivamente melhor. Inovação não necessariamente significa qualidade em filmes modernos nem deve significar só porque se trata de um clássico.
“À bout de souffle” conta a história da juventude francesa e sua aparente despreocupação com tudo aquilo que parece incomodar o resto do mundo. Não como um tipo de apatia proposital, que faz questão de negligenciar temas importantes por conta de uma personalidade considerada má, usando termos chulos, pois a questão não envolve simples julgamentos de valor — bom ou mau, positivo ou negativo. Este filme de Jean-Luc Godard fala de pessoas que conscientemente agem diferente porque discordam daquilo que a maioria faz e considera normal, porque querem transformar o padrão e se desligar das tradições retrógradas. A própria desconexão dos protagonistas com o mundo ao seu redor simboliza uma rebeldia oriunda na essência da personalidade de cada um deles ao invés do caminho óbvio de simplesmente expor descontentamentos abertamente.
De certa forma, por menos ligado às regras que “À bout de souffle” possa parecer com seus famosos e exaustivamente comentados jump cuts, ao menos ele valoriza a transmissão de uma mensagem usando a riqueza de uma narrativa cinematográfica. E mais, não se trata de especificar sobre o que o longa em si se trata, mas também qual era a base de todo o movimento de cineastas e críticos franceses revoltados. Reinventar, revolucionar, experimentar, modificar. Todas estas eram palavras ardentes na ponta da língua dos envolvidos, que moldaram suas histórias em torno de indivíduos que simplesmente eram diferentes daquilo que costumava ser visto no cinema americano, por exemplo. Nada de uma figura arquetípica como Samuel Spade e sua esperteza inquebrável, apesar de todas as adversidades, o protagonismo aqui é jovem e banal e tosco como as pessoas mais comuns. Não é de graça que um personagem principal tenta se espelhar no próprio Humphrey Bogart no cotidiano, como se isso fizesse dele alguém mais respeitável de alguma forma em vez de infantil, o que é mais próximo da verdade.
Então, sim, percebe-se que existe algum argumento por trás de todo aquele aparente nada. Aparente porque não posso acusar “À bout de souffle” de não ter uma premissa. Pode não ser um exemplo forte, mas existem certos eventos que impulsionam a história para frente. Tudo começa quando Michel Poiccard (Jean-Paul Belmondo), um ladrão-andarilho é perseguido pelas autoridades em uma de suas desventuras e acaba atirando em um policial. Ele passa a ser procurado em toda a França, mas mostra-se mais preocupado com continuar roubando carros na companhia de Patricia Franchini (Jean Seberg), uma estudante de jornalismo que espera entrar na universidade de Sorbonne.
Mas e daí? É relativamente fácil ligar os pontos sabendo qual a proposta de todo o movimento da Nouvelle Vague, mas não diria que “À bout de souffle” faz um bom trabalho na transmissão desses ideais rebeldes. Ela é introduzida por si sem que comunique suas intenções de forma clara, enquanto a solução nada tem a ver com exposição barata revelando as intenções dos artistas responsáveis. Em outras palavras, existem alguns indicativos sinalizando uma tendência narrativa e não muito mais do que isso. Por mais que esteja sendo perseguido pela polícia, Michel não está nem aí e continua vagando de carro roubado em carro roubado, de Montparnasse a Montmartre, sem estar ativamente fugindo. Ele só continua com sua rotina de não fazer nada em particular e ocasionalmente fazer um telefonema cobrando pessoas que lhe devem dinheiro. Mesmo assim, nem para cobrar os outros ele parece estar particularmente ativo. Tudo bem se a pessoa não estiver disponível, Michel sempre pensa que talvez no próximo dia a solução apareça facilmente.
A garota por sua vez, tem um tipo de pseudo-emprego vendendo jornais americanos em Paris para se ocupar enquanto espera por uma vaga na universidade. Até ela, por mais que tenha objetivos melhor definidos, não parece muito ansiosa ou determinada a chegar onde deseja. Apenas um momento dentre dezenas de outras cenas mostra a menina realmente correndo atrás de algum tipo de objetivo maior que o hedonismo inerte, algo diferente do tal narcisismo frequentemente apontado pela crítica como combustível daqueles dois jovens. Não há manifesto de vontade forte o bastante para ser atribuído à uma inflação de ego, apenas inexperiência, ingenuidade e talvez ignorância por trás de cada ato pouco inspirado. Afinal de contas, está tudo certo porque eventualmente os pais vão mandar dinheiro dos Estados Unidos para ela continuar se virando na França na companhia de um vagabundo. Seria um sinal do tipo de ideais defendidos pela tal nova geração de cineastas? Provavelmente não. Apenas outro indício de que, sim, eles são bastante diferentes dos velhos, dos conservadores e dos contentes com manter o status quo.
O que há de tão fascinante nisso, não sei dizer direito. “À bout de souffle” é, em grande parte, um filme que deixa um sentimento de “tanto faz” no espectador com exceção dos momentos em que o vácuo de eventos significativo dá lugar à algumas interações cativantes. Nelas, é possível esquecer quão sem graça é Michel e apreciar como a personalidade jovialmente enigmática de Patricia extrai alguns momentos bons dele. Por causa disso não consigo evitar pensar justamente na razão que faz “Jules et Jim” um filme tão bom: personagens interessantes a ponto de sustentar uma trama simples. Talvez esta obra de Godard seja importante e respeitada mais pelo que permitiu outros cineastas fazer do que pelo que faz exatamente. Gavrilo Princip deu início à Grande Guerra com um tiro, mas o que é isso diante da carnificina em Verdun? Este filme foi o empurrão, enquanto o ápice veio mais tarde.