Longe de serem universalmente considerados jóias do cinema, ao menos é possível dizer que os trabalhos de David Lynch conseguem causar uma impressão forte. Boa ou ruim, é fácil se sentir atraído pela atmosfera bizarra criada pelo diretor, o qual injeta em suas histórias o sentimento de que há algo a ser descoberto em meio a tantos enigmas e símbolos. Entre elementos que certamente não parecem nem um pouco normais ou perto do natural, há uma sensação de que tudo aquilo eventualmente se desmistificará para a audiência e a fará pensar em como todos os detalhes incompreendidos se encaixavam. “Blue Velvet” é isso e mais: um retrato pungente da realidade apoiada por personagens que certamente não estão no espectro da banalidade.
Indo visitar seu pai no hospital, que teve um enfarto súbito enquanto regava o quintal, Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan) corta caminho por um terreno baldio e encontra uma orelha em decomposição no chão. Sua primeira reação é ir até a polícia, mas quando o detetive responsável nega divulgar mais informações ele passa a investigar a situação sozinho. Ou melhor, sozinho não, com Sandy Williams (Laura Dern), a jovem filha do detetive de polícia. Juntos, os dois começam a descobrir toda a verdade sobre uma rede de crime envolvendo uma cantora de casa noturna, um bandido psicótico, extorsão e violência.
Devo dizer que esperava alguma bagunça incompreensível de “Blue Velvet” ou, no mínimo, um filme menos fácil de acompanhar do que acabei encontrando. Mas que não haja confusão: eu não queria nada disso. Foi satisfatório ver que em seu trabalho mais famoso o diretor não se deixou levar por uma comunicação difícil de acompanhar e enigmas que apenas ele entende. Pelo contrário, nem de longe este é o tipo de filme que precisa de interpretações, explicações e esclarecimentos constantes para que seu conteúdo seja minimamente compreensível. Ao mesmo tempo, não é óbvio a nível da superficialidade ou, pior, tenta usar simbolismo e uma linguagem mais complexa sem muito sucesso. Definitivamente não se pode acusar a obra de presunção ou de ser confusa demais, como foi o caso de “Eraserhead“. Ambição é acompanhada de uma história que consegue ilustrar as intenções do criador.
Tomando os personagens de “Blue Velvet” como um ponto de partida, é possível notar um claro avanço do Henry Spencer de “Eraserhead“, por exemplo. Protagonista contra protagonista, é muito mais fácil ter um envolvimento com Jeffrey Beaumont porque seu trajeto e suas inspirações são palpáveis e críveis. Sem pensar nos toques excêntricos de Lynch ainda, o trajeto do personagem principal começa e prossegue de forma natural, com uma coisa levando à outra sem que o espectador tenha que preencher os espaços em branco que algumas narrativas possuem ou tentar desvendar uma trama misteriosa. Jeffrey é naturalmente curioso e sequer tinha pretensão de se envolver em qualquer um dos eventos tensos que aconteceram depois. Sem uma orelha decepada, ele seguiria sua vida se ocupando com qualquer outra coisa. Com ela em jogo, a sedução é forte demais para resistir e, assim, qualquer obstáculo se torna incentivo para continuar seguindo em frente. Portanto, é apenas lógico e também mais natural seguir a trama quando ela é tão afim com a personalidade familiarmente humana do protagonista.
Quanto aos coadjuvantes, há um pouco de cada canto para construir a imagem de uma sociedade multifacetada, uma que não pode ser facilmente descrita ou categorizada. Como tanto já se comentou sobre as cenas iniciais de “Blue Velvet” envolvendo a transição de uma realidade estupidamente colorida e correta como nas propagandas mais típicas dos Anos 50, o filme tenta unir visões díspares de sociedade numa narrativa só através dos indivíduos que a elas pertencem. Jeffrey, como descrito, é como se fosse um desbravador dessa amálgama; Sandy, por sua vez, faz parte da parcela caviar da sociedade com suas roupas cor de rosa, cabelos loiros impecáveis, preocupações constantes com seu pretendente e ocasional maravilha diante daquilo que é de fora de seu castelo de vidro. E isso está longe de ser o contraste realmente destoante, pois existe gente como Frank Booth (Dennis Hopper) e Dorothy Vallens (Isabella Rossellini) envolvidos na situação.
Em termos de atuação, não há dúvidas de que o caminho a seguir é se juntar ao coro e elogiar ambos. Eles pegam os personagens melhor escritos fazem deles também os melhor interpretados por representarem as inspirações de David Lynch no Noir, gênero que frequentemente mergulhava profundamente na parte imunda da natureza humana. De um lado, Frank. Soa tosco dizer que ele é um vilão legal e só, pois o que ele representa vai muito além de quem ele é como pessoa. Claro, sua caracterização e personalidade são ambas essenciais na construção de um personagem que faz o espectador reagir com desgosto e raiva. Mas tendo em mente a ampla discussão da moral num contexto urbano de “Blue Velvet”, suas crises psicóticas de esbofetear mulheres entre doses de uma droga e toques de violência sexual são a forma brutal de mostrar que, sim, tamanha sujeira está logo abaixo dos narizes da família suburbana café com leite.
Isabella Rossellini, por sua vez, é o símbolo do sofrimento suprimido que a maioria das pessoas não ouve. As pessoas más existem e, com elas, vêm as pessoas que sofrem sua influência. Discordo quando consideram a personagem como uma femme fatale ou algo do tipo, pois é seu sofrimento que fala mais alto, muito mais do que qualquer tipo de influência ou manipulação que possa exercer. Dorothy simboliza como as pessoas podem ser quebradas e ter a mente distorcida a ponto de aceitar barbaridades e até pedir por elas. Mais do que isso, ela é essencial para que o protagonista não seja um escoteiro curioso, mas alguém com um pouco de flexibilidade moral por ter sentido um pouco do gosto do veneno que não faz parte de sua natureza. Afinal de contas, sua função é ser justamente a pessoa que não está nem lá, nem cá, e sim ocupando um espaço de exploração ingênua.
Por mais que seja um filme complexo, “Blue Velvet” não é inacessível. Há muito nele a ser descoberto e interpretado sem que a compreensão da história como um todo seja afetada por estes elementos subliminares. A própria discussão da moral e da existência de realidades sobrepostas num mesmo espaço podem ser absorvidas com pouco esforço, mas não sem nenhum. Uma segunda visita certamente pode revelar elementos antes vistos e ignorados, o que denota riqueza de detalhes sem chegar a fazer tal prática obrigatória de alguma forma. Nada do que se vê em “Blue Velvet” está próximo das ocasionais viagens solipsistas do diretor.
2 comments
Vi esse filme há muitos anos. A impressão que ficou foi forte e consistente. Gostei da linha geral da tua análise.
FILME profundo com inesgotáveis comentários.