O Velho Oeste não era como nos filmes. Li em algum lugar sobre isso e provavelmente já devo ter usado essa informação em outro texto, apesar de não lembrar qual e de o fazer de novo pela realidade cinematográfica ser curiosamente insustentável. Basta pensar um pouco. Se as pessoas vivessem num lugar em que a lei é fraca e resolvessem seus problemas na base do chumbo, sejam eles xerifes ou meros caubóis, não demoraria muito para uma população já reduzida de colonizadores caírem no caos e se afundarem nas próprias covas. Na realidade, tudo era mais parado e tosco, com as boas partes sendo mitos, em sua maioria. Matar um homem não era motivo para condecoração ou algo do tipo, e sim um tipo de estigma que alguns carregavam com insegurança — um símbolo de respeito, vergonha e perigo ao mesmo tempo. Esta é a abordagem de “McCabe & Mrs. Miller”, filme de Robert Altman que se mostra indisposto a proliferar mitos e lendas.
John McCabe (Warren Beatty) é um jogador de cartas que faz sua fortuna apostando no azar dos outros nas mesas de pôquer. Em alguns círculos ele é também conhecido como Pudgy McCabe, o homem que atirou e matou Bill Roundtree. Mas não é um assunto de que McCabe goste de falar muito, pois seu foco está pura e simplesmente em capitalizar sobre o rápido crescimento de uma cidade. Aplicando seus fundos na construção de um negócio, ele eventualmente junta-se a uma prostituta, Constance Miller (Julie Christie), para levar seu bar com bordel ao sucesso absoluto. Então surge uma ambiciosa companhia mineradora buscando dominar tudo ou, caso necessário, impedir os outros de tentarem o mesmo.
Se a trama não for particularmente cativante ou não empolgar ninguém em relação ao conteúdo, então ela está sendo completamente fiel à proposta geral. Este é outro faroeste do grupo revisionista e, mais especificamente, um que confronta diretamente as noções de glória e heroísmo comuns no gênero. Assim como existem filmes anti-guerra no gênero Guerra, dá para dizer que “McCabe & Mrs. Miller” é um anti-faroeste com missão de pegar aquilo que se conhece e desconstruí-lo diante da audiência. E há formas e formas de fazer isso. “Little Big Man” executa a idéia ao valorizar o papel dos Cheyenne em detrimento do pessoal de exército, antes tratados como heróis contra os insurgentes indígenas canibais e selvagens. Aqui o caminho é outro, começando com um personagem detentor do respeito dos outros, de inteligência, competência no jogo de cartas e capacidade de se defender contra quem por acaso decidir enfrentá-lo. Mais adiante, a verdade mostra quem McCabe é verdadeiramente comparado à forma como ele é apresentado no bar de Sheehan (Rene Auberjonois).
Para a infelicidade dos curiosos que parecem querer saber mais sobre o que diabos aconteceu entre McCabe e Roundtree, o próprio rapaz não se mostra muito animado para contar seus méritos e gabar-se na frente dos outros. Mas há um motivo para isso, um que coloca em xeque sua própria identidade num mundo cheio de lendas e mitos, de heróis e grandes feitos com um revólver. A não ser que o espectador se agarre muito fortemente às suas pré-concepções sobre o que é um personagem de faroeste — pistoleiro rápido no gatilho capaz de derrubar o inimigos com pura habilidade e esperteza a despeito de trapaça — é fácil notar para onde “McCabe & Mrs. Miller” caminha. Especialmente quando entra a figura de Mrs. Miller como uma personagem de maior destaque, nasce um ponto de referência e alguém novo com quem comparar. Perto dos imbecis, dos bêbados e dos brutos, McCabe pode até ser visto como algo a mais em seu terno mais ou menos arrumado e sua pose de homem esperto. Perto de uma prostituta com novas idéias e um ímpeto notável, fica difícil não repensar a situação como um todo. Considerando que um personagem normalmente coadjuvante como este impõe presença, talvez sinalize algo menos viril e heróico a respeito do protagonista.
Só não consigo deixar de pensar que esta proposta, por si, não carrega um filme nas costas. Pode ser uma idéia nuclear da obra, uma decisão relacionada a estilo ou entonação, mas não algo forte o bastante para não precisasr de outros elementos para desenvolvê-lo. Em outras palavras, “McCabe & Mrs. Miller” é carente dos benefícios da parte mais comum do Cinema: personagens com quem se pode relacionar facilmente numa história que faça o melhor uso de suas qualidades. Com exceção da eventual cena que chama a atenção por sua relevância palpável, contribuindo para a construção de outras faces de um mesmo tema, ou por serem simplesmente poderosas por si — pelas atuações de Beatty e Christie, por exemplo — vários momentos me deixaram assistindo por inércia e aguardando o que estava por vir sem muita expectativa ou empolgação. Só continuando porque ainda havia chance de algo mudar mais para frente. E isso acontece, de certa forma. Sem dúvidas o clímax é o que deveria ser, um ápice de tudo aquilo que foi construído antes; demonstra que o espectador não estava errado em pensar que tudo era um exercício de arrastar glorificações na lama.
Vários outros momentos já não podem se gabar de resultados similares por parecerem que estão meio soltos dentro da história. Contudo, alguns merecem destaque por resgatar de forma mais forte e frequente o acerto de “Knocking On Heaven’s Door”, de Bob Dylan, em “Pat Garrett & Billy the Kid“. Quando a canção toca, é um dos poucos momentos entre vários com música acompanhando que realmente funciona e agrega à narrativa um valor que as imagens por si dificilmente alcançariam. Em “McCabe & Mrs. Miller”, algo similar acontece com maior frequência até. Músicas do primeiro álbum de canções de um poeta, Leonard Cohen, são usadas como ponte entre algumas cenas que, sem elas, com certeza seriam um tanto mais vazias. É até difícil dizer o que exatamente acontece entre essa união por conta das letras puxarem bastante para o lado da poesia, mas funciona. Analisando sem compreender como as duas partes se relacionam, posso apenas dizer que o tom poético das letras encaixa-se perfeitamente com o tom niilista da obra, ainda que não chegue a compensar certos momentos de vazio semântico.
É possível perceber qual a proposta de “McCabe & Mrs. Miller” sem muito esforço, pois é um filme relativamente transparente quanto às suas propostas de desconstrução do senso comum. O que parece ser o de sempre é introduzido até que começa a se destacar com sua subversão e, finalmente, passar longe até mesmo de convenções populares do cinema em geral, não só do Faroeste. Assim como aconteceu com tantíssimos e incontáveis outros indivíduos que viveram durante a grande expansão para o Oeste, os sonhos de entrar para a história e ser mencionados passam muito longe da realidade. Suas vidas e feitos permanecem notas de rodapé esquecidas com o passar dos anos. É este sentimento de que tanto faz e nada importa que toma um lugar central na obra de Robert Altman. Para bem e para mal.