Pelo que pude assistir, não me considero um fã do trabalho de Terrence Malick. Em especial, “The Tree of Life” e “Song to Song” não constroem um argumento favorável, além de que nunca me falaram bem de “Knight of Cups” e “To the Wonder”. Então decidi voltar ao começo de tudo para ver se algum dia as coisas foram diferentes. Felizmente, “Badlands” mostra que elas foram e que a inclinação do diretor a abordar temas filosóficos — usando um termo raso — já existia, só que aplicada de um jeito um tanto mais conectado com a narrativa, ou melhor dizendo, encaixada numa narrativa mais agradável de se acompanhar.
“Badlands” conta a história de uma garota e um garoto, mas nada do que se espera quando se diz algo assim. Holly Sargis (Sissy Spacek) mora com seu pai numa cidade pequena de Dakota do Sul, vivendo de aulas de música e tédio. Situação que muda de repente com a chegada de um rapaz. Kit Carruthers (Martin Sheen) é seu nome e ele tem algumas idéias em mente, incluindo sair pelo país na busca de um sonho desconhecido empunhando uma espingarda. Logo, sua aventura em direção ao horizonte torna-se uma grande série de assassinatos.
Em 1994, 21 anos após o lançamento de “Badlands”, Oliver Stone lança “Natural Born Killers“. Nele, um casal de pessoas perturbadas sai pelo país distribuindo morte gratuitamente, tirando a vida de pessoas sem motivo algum e ainda recebendo a atenção da mídia, que os trata como um tipo bizarro de celebridades. A função da obra não é celebrar o assassinato e glorificar as pessoas que o cometem, ao contrário do que sua apresentação espalhafatosa pode sugerir, sendo esta característica uma forma de antítese para o que se pretende dizer. A obra de Terrence Malick, por outro lado, tem um tratamento muito diferente desta premissa similar. Diferente de exacerbar seus sujeitos às alturas a fim de criticar as pessoas ao seu redor, busca-se um caminho consideravelmente menos estilizado.
Mesmo sem fazer um esforço notável para exaltar seus personagens e cenários, o Cinema tem uma qualidade inerente de fazer isso. O simples fato de um roteiro existir e definir o que é relevante de ser mostrado já dá um protagonismo ao conteúdo. Além do mais, a direção decide qual o tamanho de cada elemento em cada enquadramento, o design de produção cria cada peça do cenário, a fotografia separa sujeitos do fundo ou esconde partes menos importantes, citando algumas funções. Querendo ou não, é uma visão subjetiva sempre díspar do que se encontra na vida real. Mas estes mesmos esforços podem ser direcionados para criar uma dissemelhança para menos, ou seja, algo até mais banal do que costuma se ver na realidade. “Badlands” abraça esta exata proposta.
A vida Holly antes dos crimes era incrivelmente chata, o avatar dos lados negativos de uma cidade de interior. Tudo é muito parado e inerte, com uma carência de novidades que amplifica o tédio a níveis incômodos. Quando chega o rapaz com as idéias diferentes e a promessa de virar tudo ao avesso e começar um novo caminho, a situação… permanece bizarramente parecida. A vida de crime, objetivamente uma quebra de rotina e tanto, chega sem anúncio, não faz promessa alguma e existe quase sem causar desequilíbrio na ordem. “Badlands” trata suas estrelas, seus protagonistas, seus atos e seu estilo de vida como nada. São eventos incomuns, peculiares, no máximo, e nada além disso. Mas que não haja confusão: a diferença de um filme narrativamente incompetente, que não consegue atribuir peso e importância a nada, e o longa de Terrence Malick, é que tudo isto é de propósito.
Uma coisa seria o personagem de Kit falar e falar as coisas que pensa e algum personagem validar aquilo como genial enquanto o espectador falha em ver o que há de tão esperto ali. Neste caso, ocorre um problema de representação, pretensão sem sucesso. “Badlands” introduz mudanças de rotina que também se tornam rotina, uma garota inicialmente atraída que passa a descrever na narração as barbaridades cometidas como alguém que viajou e está contando as novidades, como ir para a Europa e falar dos países que visitou. Mais que isso, há um tom vacilante na voz e no jeito de Sissy Spacek, que vacila entre a ingenuidade juvenil e a completa apatia sobre as pessoas que morreram e o modo como o próprio Kit encara seus atos. Toda falta de glamour, motivo e impacto é proposital nos planos de uma história que dá destaque aos protagonistas apenas para mostrar que eles não são nada de mais.
Kit pode até ser algo chamativo num primeiro momento. Para alguém como Holly, então, ele é especialmente atraente porque a vida dela é sem graça. Qualquer coisa perto de nada já constitui um contraste, o que não significa que o público enxerga com os mesmos olhos. O rapaz tem certo estilo e até algumas idéias; algumas coisas a dizer, como ele mesmo diz. A convivência com ele, por sua vez, mostra para o espectador alguém comum, que até se esforça e tenta a sorte com algumas ponderações filosóficas, mas permanece como alguém limitado e até burro em alguns momentos. Para não dizer que ele é como qualquer outra pessoa, seus valores e falta de empatia caracterizam psicopatia. Sem nada do estereótipo do psicopata inteligentíssimo, sedutor, elegante e manipulador, é claro. Encarnar este sentimento de normalidade e pouca empolgação, não emoção até, é uma tarefa enganadora. Tais reações podem até ser vistas como atuar mal na visão de Stanislavsky, produtos da desconexão do ator com o momento, ao passo que agir friamente e sem emoção evidente é um mérito total de Martin Sheen em sua missão de se conectar com seu personagem peculiar.
Toda essa soma de banalizações funciona especialmente bem com o lado mais cinematográfico e pontual de “Badlands”. Mais especificamente, quando a trilha sonora deixa de ser repetitiva e incômoda para envolver os eventos num véu diferente junto com a fotografia, que passa a entregar suas imagens e composições mais belas. Ao mesmo tempo, a narrativa reflete tal mudança com os momentos de desespero, quando a desconexão apática abre um pouco de espaço para sonhos, ambições e aspirações. As imagens das ditas terras más do título possuem um ar quase divino em sua imensidão vazia; belíssimas imagens de terra, pedras, céu, nuvens e um distante horizonte como objetivo, um ponto que tira os personagens de sua vida fria e objetiva e os leva a uma realidade subjetiva, fora de alcance, que só existe em seus imaginários. Entre tantos momentos sem reagir entusiasticamente, por vezes surge instintivamente um traço de humanidade,
Em momentos como estes, “Badlands” recheia ainda mais sua representação pouco fantástica do fantástico: ninguém é tão desumano a ponto de não ter seus próprios sonhos. Aquilo que provavelmente foi notícia de jornal e motivo de fofoca para muitos acaba sendo visto por olhos neutros, que tiram os astros de seus pedestais e mostram que existe o de sempre debaixo de todos os rótulos. Sim, as tais celebridades escolhidas como referência não são exatamente Bonnie e Clyde, mas a validez do argumento é a mesma. Com tanto empenho e eficiência nessa desconstrução do mito, é fácil ver como poderia ser aplicada a outros exemplos de famosos tratados como deuses.