Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis) é um dos mais renomados alfaiates de toda a Inglaterra. Seus vestidos são almejados pela realeza e, na maioria das vezes, ele está mais que disposto a transformar mulheres bonitas em mulheres espetaculares, usando seu talento para destacar as maiores qualidades das moças. Nem todas são dignas de usar as confecções Woodcock, assim como há algumas mulheres feitas para usá-las. Uma delas é Alma (Vicky Krieps), uma garçonete que passa a ser a musa de Reynolds pouco tempo depois do primeiro encontro entre os dois. Este é o começo de tudo em “Phantom Thread”, o qual um amigo questionou por não haver conflito algum.
Prefiro não entrar na discussão de uma história realmente necessitar algum tipo de conflito para ser boa, então enxergo tal questionamento como uma opinião que julgou a história como pouco empolgante. E ele está certo, por um lado. Se a trama não desperta o mínimo interesse do espectador, é provável que ele nem chegue a conferir se o produto final vale a pena. O que costuma-se omitir quando se fala em premissa, entretanto, é que o significado de musa é um tanto menos romântico do que o senso comum dita. “Phantom Thread” vai fundo nos detalhes sórdidos da obsessão do alfaiate por sua arte e pelas mulheres que a vestem. Este é o ponto de partida que abre tantíssimas portas para a obra ser desde um filme de terror previsível — um homem que assassina mulheres belas para tentar absorver sua beleza de alguma forma — até um romance dramático imerso em tensão e complexidade psicológica — o que soa mais como esta obra de Paul Thomas Anderson.
“Phantom Thread” trata muito de psicologia, então quem seria melhor que os próprios atores para exteriorizar processos mentais invisíveis? As vontades, paixões, desejos e manias ficam evidentes a ponto do espectador sentir-se próximo dos personagens. Não tanto quanto amigos por quem possui empatia facilmente, mas aquela proximidade que permite que algumas atitudes sejam antecipadas, que o tipo de personalidade possa ser melhor visto e analisado por alguém de fora. Ao pensar em elogiar as interpretações e lembrar que Daniel Day-Lewis está envolvido, quase chega a ser um pleonasmo. Porém não é uma situação como pode se esperar, na qual o ator dá uma aula de atuação e rouba a cena, colocando-se acima de até mesmo das maiores conquistas da obra. Ele apresenta-se muito bem porque está em direta relação com a excelente escrita do personagem e com outros membros do elenco, principalmente Vicky Krieps e Lesley Manville.
Assim, sua interpretação ergue-se junto de outras duas essenciais para que se entenda qual tipo de pessoa é Reynolds Woodcock. A forma como cada uma se relaciona com ele diz muito sobre alguns lados de sua personalidade dos quais ele nunca fala e, provavelmente, nunca falará diretamente. Reações sutis de Day-Lewis denotam quando algum comportamento é relevante, que tira o personagem de sua zona de conforto e força-o a parar com as respostas automáticas. Então surgem as rachaduras na sua resistente máscara para finalmente revelar se o homem por trás dela é tão durão assim.
Os momentos em que ele fala sobre seu passado são pouquíssimos. E mais do que isso seria totalmente desnecessário, considerando que os detalhes se apresentam naturalmente e sem que sejam mencionados. “Phantom Thread” aproxima-se de um estudo de personagem por conta de praticamente tudo estar em função do protagonista. De uma forma efêmera ou mais íntima, cada pedaço de informação ou atitude sem função aparente evidencia por que o alfaiate é mais do que outro excêntrico fissurado por seu ofício e com pouquíssimo tato no lado humano da vida. Há pistas em vários lugares, mas o grande catalisador é a simples presença de Alma, que quebra completamente a rotina esnobe de Woodcock e o força a ser uma pessoa diferente daquilo que está acostumado.
E antes de qualquer coisa, “Phantom Thread” não tem nada a ver com a conhecida desconstrução do homem rabugento que encontra a capacidade de amar dentro de si depois de achar a mulher certa. Não há nada de elegante aqui exceto pelo figurino estupendo, digníssimo de gabar-se da elegância e sofisticação do nome Woodcock. Nas roupas não há um traço de pretensão sequer e, mesmo se elas não fossem tudo isso, tenho certeza de que a fotografia compensaria boa parte da falta de luxo com o foco suave e as tonalidades de cor transmitindo conforto e aconchego através das imagens. A despeito de toda a tensão existente desde o primeiro fio de inspiração do design da roupa, de toda a pressão durante a fabricação e de toda a loucura em torno do protagonista, não há como não deleitar-se com o produto final e ainda mais com a composição de imagem na qual ele é encaixado.
Por meio de vários contrastes elucidativos, “Phantom Thread” desenvolve sua proposta relativamente direta de dissecar o protagonista. Cada peça produzida é inegavelmente um trabalho de mestre, mas todo o resto é complexo e sujo e estressante. Falando em termos brutos, Woodcock é um péssimo ser humano. Ao mesmo tempo que ele traz felicidade para os donos de suas confecções, ele não poderia ligar menos para como elas se sentem. De um lado, as pessoas agem conforme consideram normal e encontram dura resistência do homem que jaz no outro lado junto de sua coleção aparentemente infinita de regrinhas. Reynolds e Alma; a rigidez e a jovialidade; a frieza e a bondade. É a mistura destes dois elementos que finalmente leva as coisas para algum lugar, dá propósito à quebra de rotina do alfaiate e resulta em um produto final que diz tanto sobre o homem quanto sobre a mulher que o acompanha. Day-Lewis mostra o que escondia com tanto afinco e Krieps notavelmente muda diante dos olhos do público conforme sua personagem entende com quem está lidando. De uma vez só, o passado e o oculto de um se revelam enquanto o futuro de outro se define.
Pensando agora, é incrivelmente difícil atribuir o sucesso de “Phantom Thread” pontualmente, dizendo que tais aspectos contribuíram para tais qualidades do filme e assim por diante. Muitos trabalham em comunhão forte que os impulsiona em direção ao mesmo objetivo de construir uma narrativa sofisticada e eficiente, independente de artifícios baratos para indicar o que acontece. Não há como dizer que Daniel Day-Lewis age sozinho na transmissão de tudo aquilo que o toca, pois ele conta com Vicky Krieps incomodando seu personagem sem saber, o que fica mais claro quando a figura respeitada de Lesley Manville entra em jogo e oferece um modelo para ser usado como referência sobre as relações pessoais de Reynolds Woodcock. Vendo como trabalha tão organicamente em conjunto, dá para dizer que este é um ótimo exemplo de esforço colaborativo