Se existe um filme culpado pelo estereótipo de que o cinema brasileiro só fala de favela, “Cidade de Deus” é o grande responsável. Faz sentido. É uma das obras nacionais mais populares de todos os tempos, aclamada pela crítica estrangeira, local e até pela Academia, que a indicou a 4 Oscars. Foi apenas natural ela se tornar algum tipo de modelo ou referência para trabalhos futuros, especialmente porque é surpreendentemente competente. Não há saudosismo ou ufanismo em exaltar qualidades aqui. Todo elogio é completamente justificado por atuações naturais e um roteiro que mostra interesse em explorar o ambiente escolhido e, mais do que isso, extrair uma boa história dele.
Consequentemente, o próprio bairro Cidade de Deus tornou-se um dos bairros mais populares do Rio de Janeiro com esta produção. Sua história é contada desde quando ainda tinha um ar rural: ruas vazias de terra batida e casas padronizadas em todo canto. As constâncias e evoluções do bairro e seu povo ao longo dos anos mostram como muita coisa muda e como outras permanecem as mesmas com uma máscara diferente. O trajeto de cada pessoa molda o local onde se vive, mas será este impulso mais forte que a influência do ambiente sobre o indivíduo? Às vezes, sim. Às vezes, não. Neste lugar ironicamente nomeado, só uma constante: a luta pelo próximo dia.
Com esta descrição, poderia muito bem estar falando de um documentário sobre a realidade social de um pedaço curioso do Brasil. Uma câmera praticamente invisível acompanhando o trajeto da mãe de sete filhos que não trabalha e, ainda assim, dá um jeito de não deixar faltar comida na mesa com muita frequência. Em outro canto, o trajeto de uma criança que perdeu os pais num tiroteio com a polícia e teve de se virar como pôde quando outras pessoas ocuparam sua antiga casa. Ou ainda a história da Cidade de Deus como um bairro e todos os planos do governo envolvidos na constituição do lugar como ele é hoje. Não é difícil imaginar possibilidades e mais possibilidades de um documentário em um contexto tão rico. Curiosamente, não é uma corrente de pensamento desconectada da realidade, pois várias técnicas utilizadas por Fernando Meirelles e Kátia Lund são emprestadas do gênero.
A grande maioria dos atores eram moradores da periferia. Mais de 2000 pessoas foram entrevistadas inicialmente, número que se reduziu para 200 depois um processo seletivo. Estes, por sua vez, foram treinados em oficinas de atuação até estarem preparados para seus papéis. O resultado final ainda contou com outros 2600 figurantes para dar vida ao populoso ambiente da favela. Dá para dizer que, apesar das oficinas, os envolvidos não foram profissionalmente treinados, atores de profissão. O exemplo clássico de “Ladrões de Bicicletas” continua firme e funcional mais de 50 anos depois. “Cidade de Deus” mostra que a contratação de não-atores pode render resultados incríveis, dar um traço de realidade a mais numa obra que busca justamente retratar a vida de uma forma fidedigna e verdadeira.
Mas “Cidade de Deus” é mais do que detalhes de produção interessantes; eles são mais do que meras curiosidades. Seus efeitos no produto final são visíveis nas atuações impecáveis e na credibilidade constante e independente da época apresentada. As crianças são convincentes e os adolescentes apresentam uma continuidade orgânica do trabalho iniciado por elas. Como membros da realidade apresentada pelos cineastas, cada pessoa trouxe sua própria contribuição, sua própria experiência pessoal ao papel. Tanto trabalho na preparação mostra frutos excelentes por meio de um elenco confortável e consciente das demandas de seu papel.
Outra peça elementar para o sucesso é um princípio simples, porém frequentemente negligenciado em várias obras — inclusive outras que tentaram seguir os passos de “Cidade de Deus” e falharam. Por trás de toda a escolha de atores e preparação de elenco, há um roteiro alimentado pelo propósito de contar uma história concreta e palpável, algo maior do que a exposição do cotidiano ou a investigação de um ambiente cheio de particularidades. Buscapé (Alexandre Rodrigues) e Dadinho (Leandro Firmino) são duas figuras proeminentes e responsáveis por este direcionamento da obra. É com eles que os temas importantes se sobressaem e tornam-se visíveis. Focado no trajeto de ambos desde a infância até os primeiros anos da vida adulta, pode-se notar os efeitos do ambiente sobre indivíduos mais próximos da audiência. Isto não é tirar importância de outros pontos, vale dizer. Acompanhar o ambiente indo de uma série de conjuntos habitacionais com apenas um grupo de bandidos até um amontoado caótico de barracos com a presença mais considerável do crime é impressionante, sem dúvidas.
No entanto, é um planejamento inteligente que faz dessa evolução e da presença controversa da polícia, por exemplo, peças que levam adiante uma discussão sobre a dinâmica da Cidade de Deus. Quando as reviravoltas na trama acontecem e histórias se repetem em épocas e situações diferentes, fica claro que o intuito da obra não é se aproveitar de um contexto rico e explorá-lo aleatoriamente. Imagino que deva ser difícil se prender a algum caminho quando há tantas histórias para serem contadas. Felizmente, o resultado de disciplina e um roteiro muito bem concebido trazem à tona um conflito similar, mas enfrentado pelos personagens. Eles também vêem um mundo cheio de possibilidades e, ao mesmo tempo, forças que os levam a caminhos praticamente premeditados. A fidelidade de cada um a seu trajeto traz suas próprias consequências e, com isso, percebe-se que ao menos uma regra vale para todos. A vida sempre dá um jeito de retribuir escolhas — sejam elas boas ou ruins — com uma consequência frequentemente inusitada. O cerne do conflito apresentado é ter apenas a incerteza como um tipo de segurança na vida turbulenta daqueles indivíduos.
Só tenho um porém relacionado a esta inclinação ao gênero documentário: a cinematografia executada primariamente com câmeras de mão. Dadas as limitações de alguns ambientes — como barrancos, corredores estreitos e locais muito pequenos — a preparação de cenário teve de se adaptar ao espectro do possível. Em outras palavras, a mobilidade e praticidade de uma câmera de mão facilitou a execução de várias cenas, especialmente as que envolviam caos e tensão, mas prejudicou muitas outras com instabilidade e movimentação excessiva. Raramente foi difícil de compreender o que estava acontecendo, já que a ação não era de um caráter muito complexo. Mesmo assim, não posso dizer que a execução é satisfatória. Vários momentos mais calmos poderiam ter passado longe das balançadas agressivas de câmera.
Não, o cinema brasileiro não é só feito de filmes de favela. Mas se todos fossem bons como “Cidade de Deus”, talvez não teria muito problema com tal associação. Algumas coisas podem estar erradas aqui? Sim. Tais erros podem ter dado origem a concepções errôneas sobre a realidade? Sim também. No entanto, minha tarefa não é julgar um filme de acordo com sua fidelidade histórica ou seu impacto depois de lançado. Analiso suas qualidades e percebo como uma execução exímia pode muito bem ter causado todos estes mal entendidos. Vendo o que me é apresentado, apenas posso reconhecer que este é definitivamente um dos gigantes do cinema nacional.