Alguns assuntos são tiro e queda para o cinema. Histórias de amor improvável, grandes tragédias, guerras, figuras históricas, contos de superação e, claro, doenças ou condições especialmente complexas. “Wonder” encaixa-se nesse último grupo ao escolher uma patologia grave que dificulta a adaptação do protagonista num mundo de pessoas supostamente normais e, de quebra, torna o filme uma história de superação de dificuldades. Esta adaptação de um livro best seller mistura dois tipos comuns de história em uma combinação ainda mais comum do que aparenta ou, em outras palavras, é uma obra que adota uma abordagem incrivelmente padrão e pouco inspirada sobre um tema popular. Isso não é dizer que o resultado é ruim, contudo, pois não seria verdade; apenas cai no clichê frequentemente demais para ser uma experiência verdadeiramente impactante.
Desde seu nascimento, Auggie Pullman (Jacob Tremblay) choca todos que colocam os olhos sobre ele. Ele nasceu com uma condição genética rara que deformou seu rosto todo e o levou a fazer diversas cirurgias plásticas para minimizar os danos. Apesar dos resultados terem resolvido boa parte de suas deformidades, ele ainda se destaca numa multidão. As pessoas olham e se assustam, bebês choram e crianças não escondem suas reações. Por esses motivos, a escola de Auggie sempre foi dentro de casa. A família inteira, especialmente a mãe, adapta a vida em torno dele, mas finalmente chega um tempo de mudança. Com idade para entrar no ensino fundamental, ele passa a enfrentar novos desafios quando encara o mundo e as pessoas frente a frente.
Em primeiro lugar, não posso deixar de comentar o absurdo trabalho de maquiagem feito em Jacob Tremblay, irreconhecível no papel. Nada do garoto parecendo garota de “Room” ou o menininho de smoking e cabelinho arrumado da cerimônia do Oscar. É impossível olhar para seu personagem em “Wonder” e dizer que é a mesma pessoa, tamanho é o sucesso da maquiagem em transformar a feição do jovem ator. Por outro lado, este não deve ser considerado um dos principais acertos da obra porque a história não tenta transformá-lo em algum tipo de anomalia ou ser anormal. A história trata o rosto deformado como algo importante e, assim, deixa de ser um tipo de exploração barata sobre um assunto com potencial comercial.
Os pontos fortes de “Wonder” partem daí. Sem fazer cerimônia para mostrar o rosto do garoto, o fato é tratado como parte da normalidade ao invés de uma atração que necessita de algum tipo de preparação para ser revelada. Sim, o material de divulgação coloca o garoto usando um capacete de astronauta, mas acho que tal omissão ainda está numa faixa aceitável. O mínimo que os criadores do filme poderiam pedir é que as pessoas confiram o filme para ver o trabalho de maquiagem feito. De qualquer forma, a revelação quase imediata mostra que o longa está compromissado com evidenciar o conflito de uma pessoa considerada diferente em um mundo que se diz normal. Estando numa posição de privilégio como espectador de todos aqueles eventos, o público recebe sua dose de realidade logo cedo. Outros pontos de vista sobre a situação de Auggie Pullman são apresentados só depois que uma primeira impressão é criada. Dessa forma, as várias perspectivas podem ser melhor confrontadas e analisadas criticamente.
Ao explorar a visão do resto da sociedade sobre o protagonista, “Wonder” sugere que não se limitará ao senso comum quando for falar de uma pessoa rotulada como diferente. Isto é, mostrar tanto o lado da família, que ama e sempre amará a criança em qualquer situação, como o das pessoas que não enxergam a situação como algo tão unilateral. Uma coisa é tentar passar a mensagem que o indivíduo deve ser amado apesar de quaisquer diferenças — o que é completamente válido — outra é explorar as diversas facetas de um contexto peculiar a fim de construir uma visão mais completa. “Still Alice“, outro filme sobre alguém com uma doença peculiar, falha neste mesmo ponto por dar uma atenção superficial às pessoas que convivem com a protagonista. Em contrapartida, “Wonder” começa bem ao fazer justamente o oposto e explorar as diferentes perspectivas dos envolvidos.
A irmã mais velha de Auggie, Via (Izabela Vidovic), é um ótimo exemplo disso. Ela sente um desejo de ser amada pelos pais ou por alguém, situação que é muito dificultada por conta de seu irmão e todas suas necessidades. Ninguém fez por mal, mas ela acabou sendo deixada de lado quando a família mudou o foco, tendo de se virar sozinha desde pequena diante dos desafios da vida. Numa situação parecida, a história revela que a mãe abriu mão de sua tese de doutorado logo que o filho nasceu, sacrificando um possível avanço de carreira. Outro ponto diz respeito à noção de moralidade em crianças. Há o senso comum dizendo que elas são puras e imaculadas, corrompidas conforme ficam mais velhas; como se as exigências da sociedade transformam a pessoa em uma variação distorcida de quem ela foi um dia.
Infelizmente, o desenvolvimento desses temas interessantes deixa a desejar. “Wonder” começa no caminho certo para abandoná-lo na metade do caminho em troca de soluções simples, clichês e pouco impactantes. Poderiam ter aproveitado a oportunidade para afirmar que nem sempre a sinceridade infantil é algo positivo ou bondoso, que há um lado moralmente questionável sobre suas atitudes. Ou então mostrar que as pessoas próximas ao indivíduo com a tal condição também sofrem muito; talvez ser corajoso a ponto de afirmar que o indivíduo não é o centro do universo. O que inicia promissor logo decepciona quando começa a dinâmica de morder e assoprar. As crianças cometem atos horrendos, mas há uma explicação completamente racional por trás disso. A irmã se sente abandonada pela própria família, mas comenta o fato tão brevemente quanto alguém que elogia a padaria nova que visitou.
Finalmente, o grande problema desta obra é ser apenas ousada o bastante para tocar em assuntos marcantes. Desenvolver um argumento incisivo sobre eles mostra-se uma tarefa acima da abordagem superficial de “Wonder”. Ainda é um resultado agradável, porém notavelmente aquém de seu potencial. Quanto a isso, não falo de uma expectativa minha ou de um caminho que eu teria seguido como cineasta, mas de um trajeto iniciado pela própria obra e eventualmente abandonado em prol de um final feliz para tudo e todos os envolvidos. A tendência do clichê água com açúcar vence a vontade de adicionar toques de realidade, no fim das contas.