O conflito entre inovação e conservação é, no mínimo, intrigante. Por um lado, usar as técnicas que deram certo no passado e aperfeiçoá-las é uma opção que minimiza riscos e facilita desde a produção da obra até sua recepção, pois os trabalhos com abordagens tradicionais compõem a maioria absoluta. Em contrapartida, pode ser tentador ir contra uma maré que se construiu ao longo de décadas e muitas vezes falha em impressionar um público carente de novidades. Quem fizer isso estará entrando para um grupo seleto e, possivelmente, para a história como um pioneiro de seu próprio método. Em suma, são dois caminhos com seus sucessos e fracassos: uma pessoa pode ser um Howard Hawks, autointitulado um diretor competente e pouco inovador, ou um Luis Buñuel, inovador da forma cinematográfica através do surrealismo; pode ser um diretor que usa todos os clichês cria algo sem identidade ou um que tenta inovar demais e faz um filme como “Nouvelle Vague”.
Não pretendo dizer que existe um caminho certo ou mais aceitável, pois acredito que um trabalho incompreensivelmente incomum é tão ruim quanto outro que não traz absolutamente nada de novo. A história está aí para mostrar que qualquer caminho pode trazer sucesso e que este não depende de uma fidelidade cega a alguma abordagem. Toda possibilidades está também sujeita a dar errado se não for executada com competência. E às vezes acontece com cineastas renomados, os quais dificilmente poderiam ser acusados de não saber o que fazem. Acredito que este é o caso de Jean-Luc Godard e “Nouvelle Vague”. Sendo um dos principais nomes — talvez o principal — da Nova Onda Francesa, era de se pensar que 30 anos depois, seus resultados seriam mais satisfatórios. Talvez eles seriam se ele tivesse continuado no caminho que começou anos antes, mas a única coisa mantida aqui é seu impulso de inovar o Cinema como arte.
A história — ou o mais próximo que se chega disso — envolve o encontro de um homem e uma mulher sob circunstâncias peculiares. O homem, Roger Lennox (Alain Delon), sofre algum tipo de acidente e está ferido na beira de estrada, sendo visto por Elena (Domiziana Giordano) quando ela passa de carro. A mulher oferece ajuda e o leva para casa, iniciando um relacionamento em que ele adota uma posição de submissão perante ela, rica e dona de um império corporativo. Mas um dia ela cansa do homem e deixa ele se afogar num passeio de barco. Pouco tempo depois, outro homem surge alegando ser irmão do afogado e saber do que aconteceu, colocando Elena numa situação delicada.
Parece simples: uma história de amor improvável dá errado, decisões controversas são tomadas e suas consequências voltam para atormentar o transgressor. Não há muita complicação em um primeiro momento, mas pode muito bem existir se este for o desejo do cineasta. Infelizmente, Jean-Luc Godard adota uma postura inusual para contar sua história, utilizando-se quase inteiramente de citações de poesia e literatura no lugar dos diálogos. “Nouvelle Vague” veio antes, mas não consegui deixar de pensar em “Ghost in the Shell 2: Innocence” e suas incontáveis citações de filosofia usadas à exaustão. Ambos utilizam um artifício normalmente complementar à narrativa como uma de suas bases, como um dos métodos principais de comunicação entre personagens e, consequentemente, entre o filme e sua audiência. Cada escritor tem seu próprio estilo e vocabulário na expressão de suas idéias, alguns sendo bem distintos da linguagem cotidiana por escolherem palavras complexas ou construções de frase atípicas. Tendo o livro inteiro em mãos, muitos autores são naturalmente difíceis de entender. Para entender a complicação da narrativa de Godard basta imaginar frases isoladas desta linguagem em sequência, sem tempo algum para respirar e entender o que está sendo dito realmente.
Para piorar, as frases complexas muitas vezes se sobrepõem, com uma fala começando antes mesmo da anterior acabar e, por vezes, continuando por um bom tempo em paralelo com um ou mais diálogos adicionais. Complexo, não complicado, é um adjetivo que eu usaria para descrever os diálogos de “His Girl Friday“, por exemplo, que foram escritos com começos e fins descartáveis porque já planejavam que os personagens seriam constantemente interrompidos por outros. Portanto o que não se ouve, não se perde. Num esforço cooperativo entre direção e roteiro, transmite-se a hiperatividade vivida pelos jornalistas. Agora, se me perguntarem o que absorvi em “Nouvelle Vague”, responderei perguntando se a pessoa já foi picada por uma abelha morta. E quando ela começar a dizer que não entendeu, começarei a falar por cima dela sem me importar com o que está sendo dito.
Para não dizer que não há significado, o próprio Godard forneceu uma interpretação. Ele diz que o filme todo é uma metáfora para a história do cinema. O homem representa os cineastas e artistas da área; a mulher serve como a indústria num viés empresarial. A indústria encontra o artista e começa a usá-lo, formando uma parceria desproporcional que resulta na quase morte do último. Aqui refere-se ao Sistema de Estúdio, que praticamente mecanizava o trabalho criativo e concentrava as decisões nos altos escalões dos estúdios. Então o artista ressurge e coloca a indústria em xeque, exigindo desta um novo tipo de relacionamento. Este fenômeno seria o surgimento da Nova Onda Francesa, originalmente chamada de nada menos que Nouvelle Vague.
Mas não é porque existe uma interpretação oficial, por assim dizer, que uma colher de chá deve ser dada ao filme. Se fosse assim, metade dos filmes independentes confusos ou plenamente fracos passariam a prestar quando o diretor esclarecesse as dúvidas no fim da sessão, cena comum em festivais de cinema. “Nouvelle Vague” foi minha frustrante e incrivelmente postergada introdução ao cinema de Jean-Luc Godard, uma obra que deixa a desejar, mas ainda possui certo charme, se posso chamar assim, por trás de todo o caos. Devo admitir que alguns elementos me mantiveram minimamente preso à experiência, evitando que eu virasse os olhos tão frequentemente que chegariam na parte de trás da cabeça. Godard claramente sabe o que está fazendo, aptidão vista claramente em algumas cenas genialmente encenadas e na própria fotografia, que nunca deixa de impressionar. Alain Delon e Domiziana Giordano contribuem mais sutilmente para a manutenção deste interesse por mostrarem-se interessados nesta balbúrdia, mas, por fim, nada disso evita que a obra seja um exercício do mais infame solipsismo artístico.