Carregar o nome de um dos filmes mais aclamados do gênero Sci-Fi é um peso gigantesco. É mais ou menos o que aconteceu com “Star Wars: The Force Awakens” e o retorno do elenco original depois de 32 anos de seu último trabalho juntos. A diferença foi que a série de George Lucas teve outros filmes para saciar os fãs em 1999, 2002 e 2005, ainda que esta saciação seja tida como insuficiente por muitos. “Blade Runner 2049” chegou depois de 35 anos do original com mil e uma expectativas a seu respeito. Seria mais uma falha ressurreição de clássico ou uma continuação digna? Felizmente, posso dizer que está bem mais para o segundo caso. Estar aquém de seu predecessor não impede que esta experiência tenha seus próprios méritos.
O ano é 2049. Depois de 30 anos da caçada de Rick Deckard (Harrison Ford) a um grupo de Replicants foragidos, a realidade é outra. A Corporação Wallace assumiu as operações da Tyrell e voltou a produzir Replicants, agora aceitos na sociedade sob normas rígidas. Um deles é K (Ryan Gosling), que trabalha para a polícia local na unidade Blade Runner. Mas sua missão muda completamente quando ele encontra os restos mortais de um fatídico modelo antigo. Com a descoberta, K descobre que a chave para o futuro está numa busca pelo passado.
Diferente não quer dizer melhor ou pior. Este é um lema especialmente válido para “Blade Runner 2049′ por conta das divergências com seu predecessor. Ridley Scott entrou no projeto apenas como Produtor Executivo e deixou a direção desta continuação de seu aclamado filme para Denis Villeneuve, aclamado diretor dos últimos anos. Houve quem se tranquilizou com essa mudança, visto que Scott entregou resultados questionáveis ultimamente, com “The Martian” sendo a exceção entre “Alien: Covenant” e “Exodus: Gods and Kings”. Divergências estavam garantidas desde o início, mas como uma nova abordagem influencia a qualidade? Imparcialmente, não há como responder essa pergunta. Comparações serão feitas e haverá gente defendendo ou criticando os dois lados. Posso apenas dizer que ambos os resultados são competentes, cada um com seus acertos e falhas.
“Blade Runner 2049” merece destaque justamente por sua originalidade. O mesmo ponto que fez muita gente amar “Star Wars: The Force Awakens” foi o que me fez criticá-lo e gostar desta sequência de “Blade Runner“. Não usam o trabalho original como referência para toda e qualquer decisão criativa. Seria fácil o bastante colocar os Replicants de volta em cena e arranjar outro personagem para caçá-los, colocando Harrison Ford no meio como participação especial para fãs — e, claro, ferramenta de marketing. Curiosamente, esta nova história começa exatamente assim, porém não se limita a isso de forma alguma. K não compartilha traços de personalidade com Deckard ou tem uma missão parecida. Sua tarefa inicial de aposentar modelos antigos de Replicants logo toma forma e resgata o passado como ferramenta essencial para o desenvolvimento da história. Assim, embora não exista mais a sensação de conhecer algo novo e extraordinário como antes, é possível explorar as mudanças de uma mesma realidade sob um novo ponto de vista.
Dito isso, “Blade Runner 2049” prioriza enredo sobre sub-texto. Decepção receberá quem esperar ver os limites da existência debatidos através das relações de indivíduos de naturezas divergentes, envolvimentos inerentemente ambíguos como a identidade de Deckard ao final. O estilo foca na sequência de eventos concretos que podem ser dispostos numa corrente lógica e causal. Seguindo os moldes de uma investigação policial, a trama segue adiante através de pistas e da perseguição de objetivos bem definidos. Antes, a importância da caçada aos Replicants ficava clara com tantas outras cenas sobre assuntos paralelos. Era apenas pretexto para algo mais. Aqui fazem o contrário. O resgate das discussões existenciais e do lugar de um indivíduo no mundo são relegados a um patamar abaixo do enredo ou tratados como peças sólidas dele.
Nada de errado com isso. Saí da sessão com ao menos alguns momentos em que fui realmente impressionado. Dessa vez por achar que havia compreendido a história para depois ter o tapete puxado debaixo de mim. É uma sensação diferente da surpresa de um significado transmitido subliminarmente, mas que dá sentido para várias questões levantadas até então. Minhas únicas críticas recaem sobre flashbacks expositivos, com objetivo único de esfregar na cara do espectador algumas revelações, e sobre a conclusão de toda essa investigação. Depois de ir longe e revirar os esqueletos nos armários da cidade inteira, senti que a recompensa para tudo isso foi apresentada de forma brusca e sem cerimônia alguma. Com isso, não me refiro à falta de uma trilha engrandecedora acompanhando uma cena dramática, mas a um tipo de prólogo aos eventos mais importantes. Seria como se tivessem encerrado “Blade Runner” com o monólogo de Roy Batty na chuva; sem as calmas cenas finais desacelerando a audiência e ainda deixando uma ponta solta no ar. Isso faz falta aqui.
Nem os visuais, que poderiam copiar facilmente o que já estava pronto sem levantar sobrancelhas, escolhem o caminho fácil. Uma cidade imersa em chuva e com a luz da lua competindo com neon são marcas registradas de “Blade Runner“. Ninguém reclamaria de vê-las de novo porque a associação é imediata. Mesmo assim, a inovação permanece dominante e a inteligência define o que fazem nos visuais. No tratamento do que já se conhece, como a metrópole praguejada pela publicidade em neon, a Fotografia de Roger Deakins retoma a idéia de explorar terreno conhecido sob um novo olhar. A cidade é a mesma e sempre parece nova. Dão mais lugar aos ambientes abertos e à interação do indivíduo com as forças brutais ao seu redor: ondas incessantes, perseguições incansáveis, propagandas colossais, imensidões reduzindo uma pessoa a nada. Ao mesmo tempo, a computação gráfica é usada com moderação e competência. Nenhuma explosão ou demonstração exagerada de poderio tecnológico se compara à simplicidade eficiente de transformar as fagulhas de uma fogueira serena nos incontáveis e vibrantes sinais de vida das luzes nos arranha-céus.
Sempre que possível, ambientes completamente novos são criados. Praticamente o prédio inteiro da Corporação Wallace é uma maravilha visual, com destaque para a sala do próprio Niander Wallace (Jared Leto) e as ondulações da água iluminadas em dourado contra paredes e teto. De fato, o prédio da Corporação Tyrell também era o ápice da qualidade visual anteriormente, mas sua arquitetura rústica, venezianas colossais e coruja não fazem muito para aproximar os dois lugares. A melhor homenagem que “Blade Runner 2049″faz é entregar competência no mesmo nível.
Com todas as suas novidades e divergências, não é como se “Blade Runner 2049” apostasse apenas na novidade. Ele inova ao mesmo tempo que tenta resgatar os sucessos de seu predecessor, mas sem chegar lá. Os únicos questionamentos efetivos são aqueles feitos através dos visuais, especialmente a Fotografia e seu trabalho nos contrastes de escala. A trama, em contrapartida, visivelmente se esforça e só. A presença de Joi (Ana de Armas), uma inteligência artificial personalizada, constantemente tenta humanizar a figura do insípido K através do sentimentalismo sem muito sucesso. Falta um personagem — ou outro elemento — para concretizar o tema do indivíduo e seu lugar no mundo, por exemplo, sugerido suavemente pelas imagens. Com sua cota de defeitos, “Blade Runner 2049” ainda é um filme muito agradável. Imagino até que satisfaça mais aqueles que esperavam um pouco mais de adrenalina no original. O ritmo ainda demonstra pouca urgência, mas a Ação tem uma presença mais notável e é melhor executada, sem dúvidas. Há espaço de sobra para surpreender fãs e críticos de “Blade Runner“.