Havia esquecido quão bom “Blade Runner” é. Fazia pelo menos uns 5 anos que não assistia a elogiada ficção científica de Ridley Scott e, nesse meio tempo, raramente me senti compelido a falar dele quando via gente falando bem ou criticando-o. Na minha cabeça, era um bom filme que marcou época por seu universo combinando elementos do Neo-Noir com o Sci-Fi, temática existencial e efeitos especiais incríveis. Mais tarde, voltou aos olhos do público com duas versões alternativas, as quais mudaram praticamente o filme inteiro com final novo, remoção de narração e adição de algumas cenas. Se, por um lado, não vi o longa como algo extraordinariamente empolgante nesses anos, posso dizer que isso mudou com a última revisita, facilmente a melhor de todas.
O Ano é 2019. A humanidade já quebrou as fronteiras do espaço e da genética. Uma grande corporação alcançou a marca de criar um robô inconfundivelmente humano em quase todos os aspectos, menos em longevidade e emoções. É através deste segundo elemento que pode-se diferenciar um Replicant, como eles são chamados, de um ser humano. Mas eles foram banidos da Terra depois de uma violenta revolta. O despacho de qualquer invasor fica a cargo da unidade Blade Runner, da qual Rick Deckard (Harrison Ford) fez parte um dia. Forçado a retornar para um último trabalho, ele deve caçar quatro Replicants que voltam ao planeta para encontrar seu criador.
Apenas para esclarecer, a versão analisada aqui é a Final Cut de 2007. Se as outras versões forem vistas depois, colocarei algum aviso para distinguir de qual delas falo. Voltando ao texto, conservei o pensamento de que “Blade Runner” era um Sci-Fi muito competente sem nunca ter algum tipo de paixão por ele. Com essa última reassistida, admito que estava corretíssimo quem disse que um filme só pode ser realmente analisado a partir da segunda vez. Esta última foi minha melhor experiência até então, pois notei coisas que não havia percebido antes: sub-textos, temas e até simbologias que podem passar despercebidas no olhar de quem ainda foca na trama. Depois de já saber tudo o que está para acontecer, fica mais fácil atentar o cérebro aos detalhes. E numa obra como essa, há riqueza de sobra para quem a procura.
Com isso, não me refiro à eterna polêmica de Deckard ser um Replicant ou não. Isso não faz diferença. É a maior questão da história, a responsável por manter vivas as discussões sobre o filme ao longo de mais de 30 anos. Pois bem, sua função é exatamente essa: propôr um debate e estimular o desenvolvimento de um dos grandes temas. Assim, não importa tanto a resposta, mas a pergunta em si. Antes do infame origami que deixou todos boquiabertos, já haviam outros dois com uma conotação diferente de indicar a natureza de Deckard. A proposta de “Blade Runner” não está apoiada num só twist perto do final, que brinca com questões de identidade. A verdadeira magia está em pequenos traços da direção de Ridley Scott, cenas que podem ser descartadas ou destratadas como as responsáveis pelo ritmo mais devagar. Uma longa sequência de Rachael (Sean Young) soltando seus cabelos — previamente sempre presos — e tocando piano pode não ter muito a dizer na superfície, ao passo que, como outras tomadas neste estilo, retoma a busca universal pela verdade, por libertação dos moldes nos quais se nasce. De uma forma direta ou não, os personagens estão sempre procurando uma ascensão de consciência em oposição a tudo o que se tinha como verdade absoluta até então.
Ter uma pomba branca em mãos no meio de um conflito de vida ou morte, idem. Uma cena como essa, além do símbolo da ave, também retoma as fronteiras existenciais quando a tecnologia progride o bastante para reproduzir, essencialmente, um ser humano em carne em osso. Mas e em espírito? Seriam os Replicants previsíveis como alguns personagens presumem ou algo a mais, capaz de transcender limites previamente tidos como concretos? “Blade Runner” reflete sobre a divisão entre natural e artificial enquanto se distancia de convenções do gênero Ação. Sendo assim, não é completamente incabível achar o ritmo lento e algumas sequências aparentemente desconexas da trama principal da caça aos Replicants. Realmente é um filme mais devagar em relação à expectativa com que se assiste, pois até em seu lançamento houve surpresa de um público que esperava mais ação e energia de “Blade Runner”. O que não é necessariamente um problema, se o longa for encarado sem noções pré-concebidas.
Nunca cheguei a me incomodar, mas sempre ponderei sobre a figura ambígua de Deckard. Ao mesmo tempo em que é chamado de Velho Blade Runner, bom o bastante para ser intimado a voltar da aposentadoria e fazer o trabalho dos outros, ele mostra uma dificuldade imensa na perseguição aos Replicants. Novamente, não culpo quem achar isso uma incoerência, mas foi um dos aspectos mais legais da experiência porque o protagonista demonstra esforço para fazer seu trabalho. Ele não é o super-herói que cumpre objetivos com pouca dificuldade. Se há alguém super poderoso na história, são os indivíduos caçados por ele. Por que ele não falha em sua busca, então? Através de situações onde a arrogância surge como compensação para sentimentos de inferioridade, retoma-se a questão do quão diferentes Replicants e Humanos realmente são. As dissemelhanças estão ali, mas até que pontos elas significam algo positivo ou negativo? Depende muito da perspectiva e da experiência de vida de cada um, aspecto que é trabalhado primorosamente ao longo do enredo e, especialmente, nos últimos momentos do clímax.
Este sucesso deve muito à proeza de Rutger Hauer — facilmente o melhor ator de “Blade Runner” — como um personagem que supera seus parceiros em complexidade. Ele é um indivíduo que, depois de conhecer a vida melhor do que a maioria, passa a questioná-la já sabendo metade da resposta. Suas indagações, inicialmente demonstrações prepotentes de superioridade física, logo aprofundam-se num lapso niilista de expansão de consciência. De um mero antagonista buscando vingança, ele torna-se a figura central para os temas da obra. Sem a execução exímia da transição de arrogância para obsessão e, finalmente, esclarecimento, a história teria de se apoiar em meias reflexões sem conclusão e a figura de Deckard como caçador de vilões. Seria uma experiência fraca, mais próxima de um frustrante filme de ação com boas idéias sem desenvolvimento.
Existem pessoas que dizem que, se nada funcionar, ao menos os visuais permitem que o espectador se desligue da história e aproveite o show. Parto do princípio contrário, pois acho que a história se sustenta bem a ponto de deixar todo o resto num patamar secundário. Sem desmerecer nada, claro. Se há um aspecto cuja qualidade não se perdeu na minha memória, foi a ambientação. Traços do Neo-Noir estão por toda a parte e funcionam, por mais que o futurismo pareça incompatível com as selvas de concreto do Noir clássico. Ele amplifica as desigualdades de um ambiente que ficou ainda pior com o tempo, cabendo ao Design de Produção estabelecer a metrópole como um misto de maravilha tecnológica e concentração da escória humana. Ao redor de uma construção visível de qualquer ponto da cidade existem ruas lotadas de lixo e miséria, arquitetura rústica e futurística competindo por espaço. Fazendo uso perfeito das peculiaridades do cenário — venezianas enormes dividindo a luz em feixes bem definidos, por exemplo — a Fotografia aproveita tanto os sets singulares quanto o trabalho incrível de efeitos práticos para incrementar os visuais como possível. E finalmente, climatizar este mar de contradições é a tarefa que a trilha sonora de Vangelis cumpre tão bem. A sensação que tive foi de estar num lugar como nenhum outro, evitando o convencional para mostrar musicalmente ambos o movimento e a solidão de estar rodeado de gente e tecnologia. No mínimo, as canções conseguem igualar através da música o que as imagens fazem com miniaturas, efeitos práticos, iluminação e design ímpares. Já é uma conquista imensurável.
Definitivamente não tinha notado metade destes detalhes em outras vezes. Ou melhor, talvez os tenha notado, mas não o efeito e como eles se encaixam num contexto maior. Faz sentido, pois é bem improvável que alguém assista a “Blade Runner” sem notar o cuidado na construção de um horizonte cheio de pequenas luzes piscando e vida preenchendo o campo de visão. A primeira sequência de “Blade Runner” já traz as miniaturas de David Dryer com todos estes pontos num longo plano para que o espectador já se sinta imerso no universo apresentado. mas foi na história onde encontrei as nuances que antes passaram batidas. O ritmo relativamente lento nunca me incomodou muito antes e hoje enxergo o porquê. Os temas existencialistas serem tão bem incorporados na trama e sugeridos através do simbolismo ocasional fazem valer qualquer ritmo devagar.