Assim como um filme é reflexo de seu tempo, ele fala muito sobre o artista por trás dele. Muitas vezes acontece subliminarmente. Tudo que a obra traz funciona como uma grande metáfora para algo grande ou pequeno da vida, um um pontual sentimento de revolta ou um aprendizado de anos condensado em 2 horas. Pode acontecer literalmente também. A história contada então se inspira ou reproduz eventos reais, conta um pedaço da vida da pessoa como ela realmente aconteceu. “A Gente” é o terceiro trabalho de uma trilogia de filmes envolvendo o Sistema Carcerário Brasileiro, do qual o diretor Aly Muritiba fez parte como agente penitenciário por alguns anos de sua vida. Com este documentário, ele busca expor uma parte da realidade frustrante enfrentada pelas pessoas desse meio.
A equipe responsável pelo presídio tem um novo inspetor. Jeferson Walkiu entra na função com esperança de mudar a precária situação atual. Há tanta coisa errada que fica difícil saber por onde começar. Falta equipamento, organização e, principalmente, gente empenhada em fazer seu trabalho. Mas é difícil culpar alguém ou pedir motivação quando o todo o sistema está fragilizado. Conforto é um sonho quando o essencial ainda há de ser alcançado. Aos poucos, o novo inspetor percebe que suas expectativas não estão na esfera do possível.
Sempre faço uma pergunta quando assisto a um documentário: ele me informa alguma coisa? Ao terminar de assistir a algo do gênero, espero saber mais sobre um assunto que não conhecia tão bem antes; ou então analisar se as informações trazidas pintam um retrato satisfatório de algo já familiar. Com isso não quero dizer que a estrutura da obra deva ser como um telejornal, artificialmente expositivo e numa tentativa de ser imparcial. Neste contexto, informação quer dizer conteúdo, seja na forma da história de uma pessoa, da cobertura de um evento ou da revelação de uma realidade rica de pormenores. “A Gente” cumpre sua tarefa elementar de escolher um contexto e falar sobre ele de forma coesa, sem parecer rigidamente fechado ou aberto demais e sem foco. Isto não necessariamente o torna um grande filme, mas já é um acerto considerável diante de várias obras tão fascinadas com suas próprias imagens que perdem o norte.
“A Gente” deixa perfeitamente clara sua proposta de mostrar uma realidade conhecida por todos os brasileiros, mas dificilmente a fundo. Todos sabem que o sistema carcerário brasileiro é uma vergonha mal administrada e falha em diversos sentidos. Comparar uma cela suja e superlotada com o sistema de países mais desenvolvidos chega a ser humilhante. O simples fato de traficantes continuarem trabalhando de dentro da cadeia é um absurdo auto-explicativo. Essa é uma parte da situação, a outra trata das pessoas que estão no presídio, mas não estão presas. O filme mostra como os reveses prejudicam também os agentes penitenciários, gente que só quer fazer seu trabalho. Eles estão ali tentando cumprir suas funções e, no caso levemente forçado do protagonista, uma missão moral de seguir o caminho do bem. Suas limitações como seres humanos e funcionários de um sistema são evidenciadas através de uma rotina imersa em dores de cabeça. Quando encontrar algo no lugar é mais exceção do que regra, os agentes logo descobrem que não são os únicos presos por também estarem de mãos atadas.
Como é de se esperar, há um viés político por trás do documentário. Felizmente, não é um ponto abordado à exaustão como causa de todos os problemas apresentados. Apontar o dedo para um mesmo lugar o tempo todo teria minado o olhar relativamente passivo daqueles eventos, cuidadosamente construído com posicionamentos de câmera pouco invasivos e, ainda assim, eficientes. Esclarecendo, quero dizer que é uma postura natural e sem pretensões de extrair à força significados das imagens. Aly Muritiba deixa sua posição política evidente apenas nos momentos finais — breves e os mais pungentes — de “A Gente”.
Por um lado, não há embrulho nenhum em posicionar-se agressivamente quanto a uma entidade governamental. É direito do cineasta ter suas próprias opiniões e imprimí-las em seu trabalho se assim desejar. Em termos de funcionar no contexto da obra, este detalhe ressaltou um leve problema de progressão. Intenso como foi, o final explicita um contraste negativo entre ele e as outras cenas de momentos antes, muito mais calmas. É uma virada súbita e desacompanhada de um gradual aumento de intensidade do conflito dos agentes penitenciários. Os problemas continuam os mesmos com sua cara de rotineiros e, de repente, os ânimos se escalam de um descontentamento para um protesto. A não ser que uma redução de garrafas de café seja mais importante do que parece pra mim. Se for assim, então fica a mensagem: faça o que fazer, não mexa com o café de alguém.
O grande problema de “A Gente” vem na forma de um aspecto com que o espectador normalmente não tem de se preocupar: o som. Não foram poucos os momentos em que eu não conseguia entender o que os personagens diziam porque a captação de som não dava conta de isolar a fala dos personagens. Ou havia muito barulho no fundo, ou o eco dos corredores de pedra da cadeia distorciam o som. De qualquer forma, ficava complicado entender algumas conversas. Faltaram legendas em mais sequências, mesmo que a língua falada e a das legendas sejam as mesmas. Seria uma adição relativamente inofensiva e já compensaria este problema técnico.
Em comparação com as outras duas partes da Trilogia do Cárcere, “A Gente” está mais para “Pátio” que para “A Fábrica” em termos de qualidade. É um meio termo entre os dois. Comparado ao primeiro, tem maior variedade na linguagem cinematográfica que uma câmera fixa e tem um núcleo mais interessante. Por outro lado, nunca chega a explorar o lado sentimental dos personagens tão eficientemente quanto “A Fábrica”. É um retrato competente, mas não sem defeitos, do que se passa entre as paredes de uma prisão, um lugar fácil de ser ignorado.