Bons ou ruins, filmes pirados costumam ficar marcados na memória. Charlie Kaufman, um dos cineastas mais inventivos dos últimos anos, é um mestre desse estilo de pensar fora da caixa. Suas obras podem não ser as melhores, mas são sempre singulares por conta da criatividade do autor. “Synecdoche, New York”, sua primeira vez como diretor, é um ótimo exemplo disso. Assim como em “Anomalisa“, um conceito simples é transformado através de uma linguagem metafórica, porém compreensível sem precisar abstrair em níveis astrais. Este não é um filme arte de narrativas confusas e beleza na fotografia como compensação. Sempre há algo concreto por trás da surrealidade de seus trabalhos.
Tome-se por exemplo o teor absurdo da premissa. Inicialmente, é a história de Caden Cotard (Philip Seymour Hoffman), um dramaturgo cada vez mais perto de afogar-se em seu mar de problemas. Sua vida em casa está longe de ideal e, para ajudar, problemas de saúde começam a empilhar sem sinal de parar. Quando o fracasso atinge níveis críticos, Caden recebe uma honra que oferece um orçamento gigantesco para qualquer produção à sua escolha. Contudo, uma peça que começa com um tema direto ao ponto logo adquire o escopo imensurável de um universo auto-contido.
A arte é a forma mais pura de expressão humana que se conhece. De fato, por trás da pureza da obra de arte existem mil e uma maquinações. Nada vem do nada, prodígios não são pré-requisitos para artistas e fluidez está mais para o resultado de trabalho duro do que para espontaneidade. Existem técnicas, princípios, teorias, regras e uma série infindável de recursos que o artista usa para chegar no resultado desejado. A audiência, por sua vez, vê o produto final como uma pintura sem pinceladas equívocas ou uma história sem furos, nunca sabendo de todo o processo por trás dessa plenitude resultante. “Synecdoche, New York” aborda diretamente este processo criativo, uma busca obsessiva pela naturalidade através da história de um dramaturgo, porém sem se limitar a isso. No trajeto, cada direção seguida pela peça contribui para a riqueza de temas deste longa. Trata tanto do processo quanto sobre os temas, forma e conteúdo em discussão.
Mudanças acontecem o tempo todo na escrita de roteiros, incluindo várias reescritas. Diálogos mudam, cenas são cortadas, outras são repensadas. O que dificilmente acontece é a mudança de temas no meio da produção. Na fase das tempestades criativas, até pode acontecer, mas não é muito comum mexer nos pilares por colocar em risco a coerência da obra toda. Somando isso a uma escala eternamente crescente e um orçamento praticamente infinito, que coloca centenas de pessoas para trabalhar em sets construídos sobre sets, não há como levar as coisas literalmente em “Synecdoche, New York”. Caso contrário, a história nada mais seria que um homem construindo uma palco do tamanho de uma cidade a partir da premissa de capturar a realidade como ela é. Nada mais seria que um grande absurdo.
Para mim, é uma metáfora tão grande quanto o escopo da peça do protagonista. O germe da obra é explícito: capturar a realidade brutal da existência humana. Poucas palavras englobando um objetivo praticamente impossível de ser alcançado. A busca do protagonista em “Synecdoche, New York” é alimentada por um intenso sentimento de insatisfação. Diferente das clássicas brigas de casal que destroem a família, seu grande problema é falar com os outros. Ele e o resto do mundo não se entendem nunca, a dificuldade de comunicação aparece nas conversas mais simples e nos papos mais sérios. Apesar de seu esforço, Caden continua sem ser ouvido até que, decadentemente, suas relações se desfazem e ele é isolado sem as partes saberem bem o porquê. Dessa dificuldade crítica surge o objetivo expressar-se puramente através da arte, o que gera certos resultados tangenciais. O caos controlado chamado processo criativo torna-se objeto de estudo e rende um resultado conciso no final das contas.
Muito de “Synecdoche, New York” está nas entrelinhas. Dificilmente o conteúdo todo se apresenta através do que é mostrado explicitamente. A interpretação dada sobre a motivação inteira do protagonista, por exemplo, seria limitada a uma sugestão da esposa. Ela recomenda que ele produza um trabalho pessoal em vez de encenar peças de outros dramaturgos. Muito se perde em enxergar as coisas por esse lado. Desse jeito, não é possível ver tudo como a representação de um processo mental complexo de dimensões tão desconhecidas quanto a escala da peça. Encenações de encenações seriam um artifício vazio em vez de uma revisita ao conteúdo vivido em busca de detalhes perdidos que dêem sentido à vida. Como rever um filme para pegar novas nuances, ele tenta capturar a realidade e, em seguida, encenar o momento dele tentando capturar a realidade em sua tentativa inicial, assim por diante. Nada disso é gratuito, claro. Por ser uma tentativa de capturar a essência humana em sua totalidade, esse processo complexo pode também ser visto como algo diferente.
É possível enxergar essa odisséia tão mal fadada quanto concebida como uma grande procrastinação. Talvez o protagonista conheça a impossibilidade de sua jornada e continue nela como um tipo de auto-sabotagem para evitar reconhecer suas vontades reais e buscar um objetivo que realmente o satisfaça. É a única explicação para “Synecdoche, New York” passar tanto tempo em cima de uma mesma idéia: apresentar um propósito difícil e complicá-lo repetidamente conforme o tempo passa na vida do protagonista. Mesmo assim, esta é uma situação em que a questão é explicada, mas não necessariamente justificada. Perto de tanta criatividade, parece uma crítica pontual a um aspecto específico da obra e não deixa de ser, de certa forma. No entanto, ela faz toda a diferença pelo tempo de filme que essa idéia repetida consome. Fica claro que há progressão e explicação por trás de toda essa dinâmica cíclica ao fim, quando expõem uma razão por trás da ação. Só falta um sentimento maior de recompensa depois de tanto investimento numa mesma idéia, o que poderia surgir através de um final mais sólido e não acontece.
Se houve algum incômodo em relação a revelações de enredo, peço desculpas. No entanto, quase nada do que eu disse é concretizado e reconhecido como verdade, assim como não me refiro aos detalhes específicos por trás das interpretações. Basta abrir o IMDb ou o Reddit para ver que existem tantas outras teorias por aí. Meu objetivo com isso tudo é mostrar que “Synecdoche, New York” possui margem para interpretações riquíssimas por conta do estilo inconfundível de seu criador, Charlie Kaufman. É um bom exercício mental, ainda que não seja um filme livre de defeitos.