O grande motivo pelo qual a arte é, e sempre será, um ofício em atividade é o fato dela lidar com questões naturalmente humanas. Melhor dizendo, a arte é uma forma de expressá-las através do filtro da individualidade do responsável pelo trabalho. Muita gente pode buscar a essência do ser humano em obras de arte, mas dificilmente a encontrará totalmente por cada obra ter pedaços pessoais entre outros universais. Pessoas frequentemente desafiam-se entre si a definir o que é amor e até hoje ninguém chegou numa resposta agradável a todos. “Hud”, por exemplo, traz o conflito comum entre gerações diferentes e seus valores. É fácil achar brigas entre pais e filhos por aí, porém poucas trazem o conceito de forma artisticamente singular como este filme.
Quatro pessoas moram numa grande propriedade do interior do Texas: Homer Bannon (Melvyn Douglas), o patriarca e responsável pelo lugar há décadas; seu filho Hud (Paul Newman), irresponsável, indomável e incontrolável; Lonnie (Brandon De Wilde), o jovem filho do falecido irmão de Hud; e Alma (Patricia Neal), a empregada de espírito forte que cuida dos três homens. Homer sempre cuidou de sua família e assumiu as responsabilidades no rancho como o dono de uma casa faria. Seu filho e herdeiro, em contrapartida, mantém mulheres casadas e bebedeiras na mente sem um traço de preocupação sobre o futuro do lugar, agora em risco por conta de uma praga súbita. Resta ao jovem Lonnie entender o que realmente acontece por trás desta relação conturbada e decidir que tipo de homem ele quer ser.
O lado bom de me enganar a respeito dos filmes que eu assisto é ter uma surpresa a mais além daquelas preparadas pela história. “Hud” não é um Faroeste tradicional por tender mais para o drama do que para os assuntos comuns, também é um filme muito melhor do que eu poderia esperar. Quatro personagens estão envolvidos em relações alimentadas pelo subtexto, mais que qualquer coisa. Sabe-se bem que a relação entre Hud e Homer não é nem um pouco fácil. Algo entre eles nunca foi resolvido e ainda assombra o relacionamento, algo pontual do passado em vez de discussões recorrentes. Um aprendeu a lidar com o outro a fim de deixar a maioria dos dias tranquilos e encarar conflito apenas quando inevitável. Não se sabe o motivo para isso tudo e Lonnie, embora curioso como o espectador, mantém uma posição de respeito ao não ser enxerido e cutucar velhas feridas. Nada que mate o interesse, pelo contrário, qualquer segredo existente praticamente pede para ser revelado. Há muita energia nas entrelinhas para ser ignorada.
“Hud” não fica apenas no mistério por trás dessa relação complexa. Se por um lado ele é espertamente alimentado e mantido no radar do espectador, não deixa a desejar na hora que estoura e revela seus detalhes. Ambos são acertos do roteiro e, de um jeito especial, da direção de Martin Ritt. Os diálogos formam uma coleção de citações memoráveis. Agregam para o atrito dormente, indicando algum fato não revelado; cortam como navalha quando colocam as cartas na mesa; e revelam os temas da obra ao mostrar quem cada personagem realmente é. O resto das relações se dá por meio do movimento e das composições sempre adequadas ao tom de cada cena. Esta outra parte é mérito de Ritt e do elenco, sem dúvida alguma. Existem ótimos exemplos de palavras duras belamente fraseadas e ações ousadamente bem dirigidas. Por si, seriam acertos marcantes, mas seu impacto real vêm dos silêncios bem colocados. Com eles, os atos têm chance de ecoarem seu efeito no ambiente, nos personagens e na audiência.
Embora seja um complemento a uma situação construída em maior parte por outros fatores — como as exímias atuações — é impossível imaginar “Hud” sem esse cuidado com os detalhes. Créditos são devidos à eficiência de Melvyn Douglas e Paul Newman, são eles os instrumentos do drama e a alma da obra. É impossível ignorar os responsáveis pelas trocas de olhares com mil significados; pela energia jovial e inconsequente de um rapaz alheio à preocupações; pelo arrependimento calado de um pai que sente ter falhado com seus filhos e agora com o trabalho. Todavia, é a direção que complementa estes elementos ao enquadrar cada conversa e cena de forma que nenhum detalhe se perca. Hud flertando com a esnobe Alma poderia passar batido como uma cantada entre tantas outras, mas há muito mais conteúdo sobre essa cena: é elementar que Lonnie esteja ao fundo vendo tudo acontecer e se empolgando até se convidar para acompanhar o tio no passeio; enquanto isso, o velho Homer pausa seu sorvete de pêssego para prestar atenção na cena que acontece. Causas e efeitos, duas relações de poder concorrentes e personalidades se apresentando numa mesma cena. São detalhes em uma cena aparentemente inofensiva que ostenta seu conteúdo principalmente através da multiplicidade de elementos em tela.
Não há um protagonista aqui. O fato do título dizer Hud é uma tentativa de capitalizar sobre o nome do personagem de Paul Newman. Correto é dizer que Lonnie, Homer e Hud possuem uma importância equiparável, pois a situação difícil entre pai e filho tem Lonnie como um significativo fator complicante. Todo amadurecimento vem a partir da experiência, de coisas que são vistas e julgadas como atraentes ou não. Dessa mesma forma, o garoto vive um pouco de duas vidas em sua jornada de conhecer o mundo. Seu tio, Hud, é o parente que todo garoto gostaria de ter: sorriso no rosto, bom humor, galanteador, bom no que faz e independente, em especial. Por outro lado, Homer mantém sua figura embasada em disciplina e sabedoria, o velho que conhece o valor da moderação.
É um cabo de guerra para o garoto: ele quer amadurecer, mas tem um gosto de como a imaturidade pode ser empolgante. Apropriadamente, os dois lados que puxam são fortes. A inconsequência de Hud, exacerbada até chegar no egocentrismo, encaixa-se como uma luva nas mãos de Paul Newman, que entrega uma versão amoral de seu típico personagem despreocupado. Anos mais tarde, esse papel amadureceria totalmente com “Cool Hand Luke“. Em “Hud”, o holofote é de Melvyn Douglas. Seu personagem sabe que argumentar não vale mais a pena para salvar o filho, mas ver os outros pilares de sua vida em risco — seu trabalho e o neto — deixam uma marca evidente nele. Como um homem orgulhoso, Homer Bannon não é de expressar sentimentos. É só por conta do talento de Melvyn Douglas que o peso da experiência se faz sentida, o cansaço de permanecer invulnerável perante os desastres do filho e a serenidade niilística de encarar o resultado de suas ações.
Apesar do tema sobre ranchos e fazendeiros, “Hud” não é um Faroeste ou algo perto disso. Há cavalos, gado, caubóis e todo o resto, mas poucos traços do gênero se encontram aqui. Há quem considere um Faroeste Revisionista por conta dos temas críticos à sociedade americana, especialmente a figura do protagonista como um anti-herói. Para mim, rotulações como esta pouco importam no final das contas. Este ainda é um grande filme sobre a dificuldade da escolha de modelos de vida num contexto familiar e como isso pode ser controverso. Poucas coisas são diretas a ponto de dispensarem questionamentos. Atuações fortes nos dois lados da moeda apropriadamente mostram que esta escolha não é uma delas.
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Parabéns pela análise do filme, adorei!