“O Castelo Vogelöd” não foi o primeiro filme de F.W. Murnau que vi no festival. Escrever sobre ele quebra a tendência de escrever análises na ordem em que vi as obras, mas acho que ninguém ligará para isso além de mim. O fato é que me sinto mais seguro e até empolgado para escrever sobre este longa antes de outros de Murnau que vi até o momento. Diferente do que algumas traduções sugerem, o “Castelo” do título não é nada no estilo medieval e muito menos assombrado — um exemplo no estilo “Nosferatu”. Talvez tenham traduzido distorcidamente na onda do filme de vampiro justamente para lucrar sobre seu sucesso.
A trama tem muito mais a ver com a vida banal, sem criaturas fantasiosas e premissas oriundas de fábulas. O castelo, na verdade, está mais para uma mansão ou château e serve como casa para uma família rica. Num grande jantar dado pelo dono da casa, vários aristocratas são chamados, inclusive uma baronesa que supostamente teve o marido assassinado pelo próprio irmão. Surpreendentemente, o dito cujo se convida para a festa e pretende ficar. Quando a baronesa chega, a noite não poderia deixar de se tornar um grande escândalo. Rumores, conspirações e um drama envolvendo a verdade sobre o assassinato tornam-se o passatempo dos convidados em sua estadia.
Ressalto tanto o fato das traduções errôneas porque elas me conduziram mal. Procurei não saber muito sobre os trabalhos de Murnau exibidos, apenas quis conhecê-los por serem de um dos maiores diretores do cinema mudo. Depois chegou o rapaz que sempre faz uma introdução aos filmes da mostra do diretor alemão. Ele disse que esta é uma história de terror subliminar, sem a parte literal, e mais além comentou sobre o título americano — “O Castelo Assombrado”, na tradução literal. Pensei que fosse, de fato, um filme de terror sem monstro, um com a representação de um temor humano sob outra forma, como uma pessoa. Foi só depois que vi que “O Castelo Vogelöd” não tem nada disso. Está muito mais para um suspense ou drama envolvendo mistério do que um Terror.
Enganos resolvidos, este é um mistério muito interessante. Primeiramente, por mudar meus conceitos sobre a obra; em segundo lugar, porque é uma história simples e bem executada. Depois que a baronesa chega na mesma casa onde o acusado de matar seu marido está presente, um clima pesado se instala. A mulher logo assume uma persona comum nos filmes de Murnau que vi até agora: a personagem que transborda emoções e sentimentos. Vale dizer que não é um simples exemplo das atuações exageradas do cinema mudo, que super-dramatizam a menor das coisas para garantir que a idéia seja transmitida. A baronesa apresenta as qualidades de alguém que já não consegue mais segurar o peso de sua própria psique. Ela cai de joelhos na primeira oportunidade e necessita de alívio ou, se possível, uma libertação do peso carregado.
Essa mesma qualidade do desespero é utilizada como um artifício da trama, que, na verdade, revela ser mais parecida com os mistérios de Agatha Christie do que com “Nosferatu”. A estrutura do enredo me lembrou a autora porque várias suas dela começam com algum evento rotineiro — uma viagem de trem ou uma reunião social — para depois introduzir um crime, a reação das pessoas à ele e a investigação posterior. O próprio “O Assassinato de Roger Ackroyd” traz pessoas discutindo sobre uma mulher acusada de matar o marido. Certamente parecido com os convidados fofocando sobre a presença do acusado aqui. As semelhanças continuam com a presença de personagens icônicos naquele contexto, como um padre em quem a baronesa confia.
Traço tais comparações porque “O Castelo Vogelöd” ostenta as mesmas características que me fazem gostar do trabalho de Agatha Christie. Não são paralelos aleatórios, eles estão ali e são bem trabalhados. Com limitações, claro, pois é uma obra breve em seus 75 minutos e capado na representação de detalhes. As obras de Christie costumavam ser recheadas de detalhes a ponto de confundir o leitor e evitar adivinhações prematuras. “O Castelo Vogelöd”, por outro lado, é um filme mudo. Naturalmente, carece de recursos por não contar com a fala, fazendo muito ser indicado e exposto por meio de ações. Estas, por sua vez, podem funcionar na correspondências das demandas da obra ou não, dependendo da história. Neste caso, F.W. Murnau tem sucesso sem poder gabar-se de profundidade. Só dá tempo de contar o essencial, explorar apenas os fatos imprescindíveis. Por sorte, é uma história que não depende tanto do envolvimento de terceiros. Talvez estes poderiam incrementar dois mistérios contidos neste longa com suas fofocas e personalidades individuais, possivelmente incrementando o suspense. Porém as cenas deste tipo são breves e mal chegam a construir qualquer coisa notável. Quaisquer interações envolvendo coadjuvantes são bem limitadas e superficiais.
Pelo menos “O Castelo Vogelöd” se sai bem no que importa: apresentar um mistério e resolvê-lo. Dos trabalhos de F.W. Murnau, este era um dos que menos me atraía porque não parecia original ou chamativo o bastante. Nem as pessoas que conhecem seu trabalho falavam muito dele, o que tornou os aplausos no fim da sessão ainda mais surpreendentes. Para um longa tão pouco comentado, ele foi bem recebido em sua exibição durante o festival. Enquanto isso, me incluo entre estes entusiastas. Das três obras do cineasta alemão que vi, esta foi a que mais me agradou. É a menos ambiciosa e a mais simples, mas não deve ser menosprezada por isso. Ela encara um desafio que consegue completar.