Numa das últimas modas em redes sociais, uma brincadeira envolve descrever filmes ou jogos toscamente, contando a história da pior forma possível para dar umas risadas. “Forrest Gump” é um candidato perfeito para essa brincadeira. Se a história fosse contada de qualquer outra forma, tenho certeza que o resultado não seria essa obra prima; singular a ponto de ofuscar qualquer pretensão de uma trama muito ambiciosa. Focar na ambição gigantesca é ver como tudo poderia ter dado muito errado, afinal fazer um filme com os maiores eventos históricos dos Estados Unidos é um risco e tanto. Como fazer algo desse tipo funcionar? Bem, para responder essa pergunta é só olhar para o protagonista.
Forrest Gump (Tom Hanks) é um homem curioso. Ele tem um QI baixo e sabe pouco sobre muita coisa, especialmente sobre o mundo em que vive. Sem entender direito algumas coisas básicas, como jogar futebol americano sem saber as regras, ele tropeça pelos maiores acontecimentos da história dos Estados Unidos entre os Anos 50 e 80; de Elvis Presley à Guerra do Vietnã, de Lyndon Johnson a Richard Nixon. Mas ajudar a escrever a história do país nunca foi o sonho de Forrest. Em sua vida só houve uma coisa realmente importante: seu amor de infância, Jenny (Robin Wright).
Toda história é um recorte da vida. Algumas escolhem planos de fundo bem específicos, como um café em Marrocos, outros abrem o leque e usam períodos como a Segunda Guerra Mundial, enquanto ainda há aquelas que não se prendem a nada, usando um pouco de tudo no processo. “Forrest Gump” se encaixa nesse último grupo, mas na verdade é mais justo dizer que, em vez de usar um pouco de tudo, ele escolhe contextos bem únicos e junta todos eles numa narrativa ambiciosa, mas nunca pretensiosa. Fazer isso funcionar é uma questão de olhar para como o próprio Forrest funciona: apesar de tudo que ele tem na vida e de tudo que ele não sabe, ele tem a humildade de alguém que conhece o amor melhor que qualquer outra coisa. É nessa humildade que a trama mergulha e faz seu personagem conhecer quatro presidentes diferentes sem parecer forçada. A narração de Tom Hanks é livre do típico tom autoritário de outras por aí, ela expressa perfeitamente a idéia de um homem que conta sua grandiosa história de vida de um jeito simples como ele.
Querendo ou não, o poder não está no que é dito, mas em como é dito. É por isso que ver “Forrest Gump” simplesmente pelos fatos revela um enredo pretensioso e uma premissa pouco atraente. Uma história de amor sobre uma pessoa meio burra que passa por eventos históricos. Qual a graça? Novamente, o protagonista é um ótimo ponto de partida. Forrest não é só mais um cara burro com carisma, pois isso não é material o bastante para aprofundar o enredo. Há uma série de motivos para Tom Hanks ter ganhado seu segundo Oscar e um deles sem dúvida é o modo como ele faz os ensinamentos da mãe de Forrest valerem: “Não deixe que ninguém diga que é melhor do que você”. Enquanto é sempre bom apreciar um personagem inteligente como James Bond, conhecedor de uma infinidade de assuntos, há algo cativante por trás da burrice de Forrest Gump. Em certos momentos ela é simplesmente engraçada, exaltando como a falta de polimento do rapaz o coloca nas situações mais inusitadas. Ir para a guerra voluntariamente é coisa para patriotas ferrenhos, mas Gump entra para o serviço militar como quem se inscreve num curso de dança; então ele volta cheio de medalhas e não muito tempo depois assume o microfone diante de uma platéia de milhares em um protesto anti-guerra. Não faz sentido nenhum, mas com ele as coisas acontecem assim, episódios com um protagonista que está ali mais por acaso que por vontade.
Já outros momentos revelam camadas que surpreendem por estarem ali, em primeiro lugar. Hanks interpreta o personagem do jeito que deveria: dá a entender que faltam uns parafusos, mas que também passam coisas por aquela cabeça. Isso é crucial e aparece de verdade quando o personagem cresce, desenvolvendo sua falta de capacidade a um ponto que realmente deixa claro que ele ser burro nunca foi um problema, e sim uma parte elementar de alguém que peca em inteligência e compensa em humildade. O pouco espaço em sua cabeça é dedicado apenas a sentimentos bons, coisa que muitos sequer chegam perto de alcançar. Se alguém vive o momento, essa pessoa é Forrest Gump. Não porque ele é uma pessoa que pratica o mindfulness, mas porque ele não é capaz de viver de outra forma. Forrest vive o que a vida lhe dá, e para ele isso é o bastante.
Sua sorte é que a vida lhe deu os maiores eventos que tinha, sejam eles os melhores ou os piores. Para um contador de história, isso é uma mina de ouro. Robert Zemeckis pode não ter escrito o roteiro, mas fica bem clara sua influência nele. Ele aproveita a dinâmica episódica da vida de Forrest quase da mesma forma que na trilogia “De Volta para o Futuro”: mostrando que, de fato, a história se repete. Na trilogia, o modelo colocava Marty McFly enfrentando situações parecidas apesar das épocas diferentes, ao passo que aqui o esquema brinca com noções de destino e o estilo de vida “um dia de cada vez” de Forrest de um modo ainda mais refinado. Como a vida dele é simples, certas repetições vão além de simples coincidências e tornam-se constantes. O personagem em si não muda muito com o tempo, então as coisas que o atormentavam quando criança voltam mais tarde como se fossem novidade para um rapaz que não tem o recurso para se adaptar e prevenir que terrores antigos voltem a incomodar. Não é repetitivo, apenas uma oportunidade de ver um ator que está tão imerso no papel que faz cada repetição ter a mesma força da primeira vez.
E assim uma das histórias mais ambiciosas do mundo deixa de lado um possível caráter pretensioso para abraçar seu conteúdo com a mesma humildade que seu protagonista enxerga a vida. “Forrest Gump” reaproveita todo o entretenimento dos grandes eventos da história americana e faz a audiência rir, chorar e, acima de tudo, se importar. Nessa história, as grandes cenas são tratadas com simplicidade e a simplicidade com grandeza; momentos gigantescos como uma guerra deixam de capitalizar na própria popularidade para desenvolver um homem que aparentemente não tinha muito para oferecer. O título de obra-prima já seria merecido se esse fosse o único sucesso deste longa, mas, felizmente, essa história tem muito mais a oferecer do que isso.