O que acontece quando diretores famosos do cinema partem para a televisão? Às vezes o resultado é duvidoso pelo formato ser tão diferente, afinal uma série de televisão não segue as mesmas regras de um longa-metragem. O caso de “Twin Peaks” foi um tanto diferente. David Lynch estava em começo de carreira, tendo dirigido apenas 4 filmes antes de começar seu trabalho no seriado, mas que já eram o bastante para chamar a atenção. Com “Blue Velvet” e “Eraserhead” no pacote, é difícil pensar que seria diferente numa década de ação desenfreada; eles alavancaram sua carreira como um diretor de personalidade. Então surgiu a oportunidade de colocar os talentos surrealistas de Lynch em conjunto com as idéias de Mark Frost na televisão, originando talvez não um dos melhores seriados, mas um dos mais marcantes da TV Americana.
A série surgiu quando o agente de Lynch sugeriu que ele criasse um seriado de televisão e imprimisse nele sua visão peculiar dos Estados Unidos, demonstrada antes em “Blue Velvet”. Dessa vez, as coisas saíram um pouco diferente. A idéia central da série envolve o cotidiano de uma cidade de interior, um lugar onde as coisas não costumam acontecer até a hora que finalmente acontecem. A monotonia de fazer as mesmas coisas é esquecida quando Laura Palmer (Sheryl Lee), uma das queridinhas da cidade, é encontrada morta na margem de um lago. A questão não é apenas por que alguém mataria uma linda mulher, amada por tantos na cidade, mas quem seria o assassino entre pessoas que se vêem todo dia? Para apimentar um pouco mais as coisas, Dale Cooper (Kyle MacLachlan), um extravagante agente do FBI, é enviado para investigar este crime.
Mas o grande mistério não é quem matou Laura Palmer, e sim o que diabos é a cidade de Twin Peaks. Esta não é uma série alimentada por uma investigação corrente, que é resolvida aos poucos até que uma grande revelação conclui toda a investigação com um estouro inesperado, apesar das pistas reveladas até o momento. Analisar “Twin Peaks” em termos estritamente narrativos não é o caminho a se seguir, pois não só desvia da proposta inicial de explorar um universo complexo, porém contido nos limites de uma cidade pequena, como também evidencia violentamente os pontos mais fracos do seriado. O elemento definitivo da experiência aqui se resume a entender como a morte de uma garota impacta uma cidade inteira. Ela era linda, desejada por garotos e homens, a filha exemplar, a garçonete que todos queriam em suas mesas… e o que mais? Quem ela era realmente? Um rosto bonito por si não tem poder para atiçar conflitos passados e mudar a vida daqueles que viveram ao seu redor. Por trás de aparências e intenções bem definidas existe um prato cheio de segredos.
Todo mundo em Twin Peaks tem algo a esconder. Do personagem mais coadjuvante ao próprio Agente Cooper, sempre há algo que não soa certo. Não porque eles são mal escritos, mas porque eles são uma afronta direta à mentalidade padrão de uma audiência acostumada ao clichê. Com isso não digo que quem assiste tem mau gosto e só assiste porcarias, mas que existe uma certa expectativa sobre qualquer coisa que fazemos — seja em ações simples como abrir a torneira e esperar a água jorrar ou outras como esperar que as pessoas gostem da gente como gostamos delas. Na hora de assistir um filme ou seriado, personagens são apresentados fazendo alguma coisa ou falando algo, ações que criam uma imagem mental na audiência de quem são aquelas pessoas e como elas funcionam. “Twin Peaks” brinca com essa noção como poucas obras fazem. Depois de uns momentos fica claro que aqueles não os personagens de sempre, seus papéis na trama, então, são tão enigmáticos quanto suas próprias personalidades.
Lynch e Frost apresentam seu trabalho com base parcialmente em novelas e séries de investigação policial, duas vertentes bem diferentes. Uma apresenta episódios formulares com um bandido por episódio — tendência mais popular na época — e a outra com personagens relativamente estereotipados em suas rotinas. A mistura desses dois mundos combina os personagens carismáticos de um seriado policial com a dinâmica cotidiana da novela e a peculiaridade surreal de Lynch. O resultado? Um dia-a-dia de personagens tão icônicos que não há como prever o que farão a seguir. Curiosamente, evitam o clichê usando métodos bem… diferentes, se posso dizer. Há momentos em que o elenco é um esquete de comédia, que estaria em casa em “Saturday Night Live” ou em “Monty Python”, agindo tão fora do comum que não há bem como entender por que fazem aquilo. Enquanto outras situações abrem espaço para uma humanidade que impressiona por existir em alguém que parecia ser o avatar da esquisitice. O melhor de tudo é ver elementos tão distintos se relacionando entre si, tendo impacto por sua simples presença, a personalidade incomum de um atiçando os demônios de outro.
Em “Twin Peaks” cada pessoa tem algo por trás de sua máscara extravagante. Um amante, um fetiche, uma mania, um desejo profano… Pegando o próprio Agente Cooper, por exemplo. Olhando para ele, enxerga-se um indivíduo que acorda mais cedo para passar um tempo em frente ao espelho depois de um longo banho: terno preto bem passado, sapatos polidos, barba feita e cabelo penteado. Ele senta-se para o café da manhã e tira um gravador do bolso, fala com uma tal de Diane e faz relatórios frequentes de seus pensamentos, de sua investigação, necessidades e até detalhes frívolos. Diane é real ou apenas um jeito que ele arranjou de organizar pensamentos? Então chega a garçonete com uma xícara de café preto e ele quase sobe na parede em êxtase. Não é exatamente o comportamento que se espera de um engravatado do FBI, mas é a combinação perfeita para Audrey Horne (Sherilyn Fenn), uma colega de Laura Palmer que é absolutamente louca por Cooper. Ela tem apenas 17 anos e já é um tipo de femme fatale em formação. Inteligente, sabe o que quer, manipulando quem precisar para sua satisfação, mas sem o polimento necessário para sempre ter sucesso. É o charme sedutor com um toque de ingenuidade que quase chega lá, mais uns anos e talvez ela seja uma grande mulher ou alguém como seu pai Benjamin Horne, uma figura central para várias intrigas em Twin Peaks. Diferente de todos estes está Bobby Briggs (Dana Ashbrook), talvez o personagem mais babaca de todos tempos. Seus planos mirabolantes somados a seu ego inflado e sua atitude explosiva fazem dele o rosto um rosto facilmente socável e um grande personagem justamente por mexer tanto com quem assiste.
É bem claro que o ponto mais forte aqui é o elenco. Por muito tempo é ele quem leva a história para frente simplesmente com suas interações e revelações, fazendo o espectador se interessar por sua agenda diária, descobrir quem eles são e como isso pode mudar o rumo da investigação. Na verdade, o assassinato de Laura Palmer foi concebido como um MacGuffin, um elemento que alimenta a história inteira sem ter uma importância concreta. Isso quer dizer que não estava nos planos dos criadores resolver o crime, essa era apenas uma desculpa para colocar alguém grande como Dale Cooper numa cidade pequena como Twin Peaks. E bem, depois de uns episódios a verdade aparece: não dá pra considerar a investigação como a melhor parte quando há um elenco tão singular. Particularmente, o foco da série sempre foi claramente seus personagens e nunca tive problema com isso. Até porque o enredo não é abordado cirurgicamente como todo grande mistério, muitas soluções acontecem na base da coincidência e da sorte, justificada em parte pela atmosfera fantasiosa que criam aqui. Basicamente dizem que tudo é possível naquela cidadezinha madeireira — algo como uma Twilight Zone — sem nunca usar essas palavras explicitamente. Também nunca reclamei disso, essa era uma característica da série bem administrada praticamente até o fim, embora me fizesse perguntar para onde tudo aquilo estava caminhando. Isto é, se sequer existia alguma finalidade para tantas interações curiosas.
Ver Audrey Horne capciosamente entrando em cena com os estalos de dedo da trilha sonora já evoca sentimentos fortes. Algo está para acontecer. Isso tudo é sempre legal de ver e, no mínimo, marcante. Mas qual o ponto de tudo isso sem um arco maior que englobe relações e outras tramas menores? Os criadores tomam certas liberdades na investigação durante um tempo e enrolam seu progresso, só que nesse ponto ainda não me sentia realmente incomodado com a questão de existir um enredo ou não, era só uma ponderação. A emissora não pensou que nem eu e pressionou a equipe para resolver a morte de Laura Palmer de uma vez. Desestabilizados pela falta da base que segurava tudo junto, a qualidade dos roteiros logo decaiu. O assassinato tomou desde o primeiro episódio até meados da metade da segunda temporada; enquanto o que veio depois é o responsável de tantas pessoas frequentemente falarem que a segunda e última temporada de “Twin Peaks” é uma porcaria. É pior, com certeza, mas vale notar que ela tem 22 episódios contra os 8 da primeira, quase três vezes mais. Além do mais, a primeira nada mais faz que uma vasta apresentação do elenco extenso, dos vários arcos e das intrigas entre os personagens. Restou para a segunda resolver a grande questão de Laura Palmer, um segundo núcleo introduzido logo depois e praticamente todas as intrigas menores. Planejando tudo já seria difícil; sem aviso, como aconteceu aqui, não poderia resultar em nada menos que desastre.
“Twin Peaks” perde o chão e perde o foco depois dessa grande revelação. O que vem a seguir é uma sequência de novos pequenas histórias mal dispostas numa visão geral da narrativa. Depois do grande arco surgem, no mínimo, seis arcos diferentes; a maioria com relevância bem questionável. Não preciso dizer que nenhum se iguala ao impacto que Laura Palmer causou no começo; e pior, alguns são plenamente ruins, mal administrados além de iniciados e terminados apressadamente. Com um enredo cada vez mais perdido e desinteressante, uma audiência antes eufórica começou a parar de assistir. Poderia ter sido um sinal para a emissora ceder o controle de volta aos criadores para que o rombo narrativo pudesse ser consertado. Mas não, a emissora jogou o seriado de um horário para outro até um ponto que ninguém sabia direito que horas a série passaria — sem internet, a informação não era de tão fácil acesso. Para completar essa bagunça, é dito que Lynch e Frost, numa tentativa de bloquear a influência da emissora, terminaram a temporada sem amarrar as pontas soltas propositalmente. Sem um final apropriado, a emissora teria de lançar mais uma temporada para sanar as dúvidas do público. Bem, isso não aconteceu. Se essa tentativa de manipulação é verdadeira, não posso dizer, sei apenas que o que escolheram como final nem de longe mostrou-se como uma conclusão satisfatória. Na verdade, foi um péssimo final. Perde muito tempo explorando um conceito mal caracterizado, não passa um mínimo de sentimento de final. Não salvou a narrativa atropelada que havia se instalado, pelo contrário, apenas perpetuou e solidificou esse elemento como o calcanhar de Aquiles de “Twin Peaks”. Por um tempo não liguei para o ritmo tranquilo como abordaram a investigação, mas chega um ponto em que finalmente a falta de objetividade e finalidade fazem uma falta tremenda.
Como disse antes, essa não é a melhor série da TV Americana e, sinceramente, nunca esperei que fosse. Uma das mais marcantes, talvez? Aí sim, não posso nem questionar. Primeiramente, porque ela deu alguns passos importantes na transformação da televisão numa arte sofisticada como conhecemos hoje. A fotografia e a direção tornavam o ambiente um elemento vivo, enquanto a preocupação com a narrativa — mesmo que esta tenha falhas — fazia dos episódios oportunidades de contar algo grande em partes, em vez de partes auto-contidas. Fale o que quiser de “Twin Peaks”, mas uma coisa é inegável: ela tem personalidade. Seja por seus personagens enigmaticamente peculiares, pelo contraste entre a monotonia da cidade de interior com a agenda complexa do elenco ou pelos toques sobrenaturais que permeiam aquele contexto curioso, há algo que vai deixar o espectador sempre na expectativa de ser surpreendido.