“Twin Peaks” chegou revolucionando o modo como os seriados de televisão eram feitos, inovando na estética e na direção a ponto de dar um ar cinematográfico e profissional que antes não existia. Depois de incontáveis histórias bizarras e mistérios cheios de reviravoltas, a audiência foi decepcionada com um final ainda pior que o rumo que a série vinha tomando. Não concluem muitos arcos, ao passo que outros são conduzidos insatisfatoriamente. O gosto deixado era tão amargo quanto poderia ser. Então veio o anúncio de “Twin Peaks: Fire Walk With Me” em seguida ao fim da série, aumentando a esperança pelas respostas que o seriado deixou de oferecer.
Este filme funciona tanto como prólogo como epílogo da série, embora conte muito mais sobre o que veio antes do que o que veio depois. Um ano antes do caso Palmer, dois agentes do FBI são enviados para investigar um assassinato com traços sobrenaturais: Teresa Banks é morta sob circunstâncias suspeitas e que podem estar relacionadas ao que acontece em Twin Peaks mais tarde. Alternadamente, retornam à clássica cidadezinha para mostrar os sete últimos dias de vida de Laura Palmer (Sheryl Lee) antes de encontrar seu destino nas mãos de um assassino.
Em primeiro lugar, dois avisos. O primeiro é para evitar qualquer tipo de confusão, pois, apesar de “Twin Peaks: Fire Walk With Me” se passar antes dos eventos da série, seus eventos estragam muitas revelações vistas lá. O filme supõe que o espectador assistiu às duas temporadas, funcionando mais como uma expansão da história. Meu segundo aviso é que, consequentemente, falar deste longa é falar do seriado, então o texto terá spoilers de ambos. Bem, aos que esperavam respostas e esclarecimentos sobre o que aconteceu com seus personagens queridos, especialmente o Agente Cooper (Kyle MacLachlan), devo dar más notícias: esta obra não ajuda muito. A única resposta concreta sobre o que acontece depois da série dura segundos e não é tão reveladora assim, já era possível deduzi-la sem este longa . Sendo assim, o final continua incompleto e fraco, sem a conclusão que todos esperavam. Isso pode gerar certa revolta em cima de “Twin Peaks: Fire Walk With Me”, mas que as frustrações sejam dirigidas ao lugar certo: os culpados aqui são os criadores. A promessa nunca foi responder todas as perguntas que ficaram, por mais que essa fosse a vontade do público. Este é um bom filme por outros motivos.
Uma das coisas que eu mais gostei em “Twin Peaks” foi o elenco de personagens, mais especificamente como cada um é uma figura complexa, cheia de manias e esquisitices reveladas aos poucos. De todos estes, um dos mais interessantes foi Laura Palmer, uma personagem desenvolvida a fundo mesmo estando morta desde o primeiro episódio. As primeiras cenas mostram seu corpo sendo recolhido da areia e desembrulhado dos plásticos para mostrar um rosto angelical. Quem poderia ter feito uma coisa dessas? Surge, então, uma mitologia em cima da personagem, um contraste brutal entre a imagem que pintam dela e quem ela foi de verdade. Erguem um monumento em seu nome e depois o desconstroem. A filha exemplar, imagem da pureza, logo mostra suas verdadeiras cores quando dois caras descobrem que estavam saindo com a mesma garota; a aluna que nunca perde uma aula tira um tempo no intervalo para cheirar cocaína. A transformação da imagem da garota é forte e reforça que o maior mistério da obra nunca foi quem a matou, mas quem ela foi de verdade.
“Twin Peaks: Fire Walk With Me” vai ainda mais fundo na figura de Palmer, como se não bastasse todas as duras verdades descobertas antes. Sete dias são o bastante para mostrar em carne e osso todas aquelas barbaridades sobre sua pessoa. Poderia ser uma simples oportunidade de agradar os fãs mostrando algo que só havia sido falado, mas nunca visto, sendo que é muito mais que isso. Por mais chocante que tenha sido saber que Laura não foi imaculada como foi sugerido, faltava uma razão para tudo aquilo. Por que alguém como ela, bonita e podendo escolher quem namorar, se entregaria à prostituição? Não fazia muito sentido, mas também nunca fez falta por não ser um elemento essencial para a narrativa seguir adiante. Explicam melhor essas questões de uma forma ainda mais impiedosa que antes, mostrando no formato mais compacto do longa-metragem um roteiro melhor direcionado e audacioso, sem medo de entrar em assuntos pesados. Não poderia ser diferente também, um comportamento insalubre como o de Laura precisava de motivo e atriz fortes para ser convincente como conseguem ser aqui. Meu único problema é com pontos menores e mal executados — como a função do anel na história e certos detalhes da primeira investigação. A maioria do elenco retorna, nem que seja para uma ponta, com algumas exceções. Alguns passam batido e não importam muito já outros não têm a mesma sorte. Outra, sendo mais específico. A atriz que atuou de Donna Hayward foi uma das que não voltaram e foi substituída por Moira Kelly — atriz que interpretou qualquer personagem, menos a Donna de antes. Ver um rosto diferente não foi o problema, as coisas complicam quando a função deste filme era desenvolver sua personagem e explicar melhor algumas de suas atitudes em “Twin Peaks“, que antes pareciam um tanto forçadas e sem razão. Simplesmente não funciona quando duas atrizes interpretam duas versões totalmente diferentes da mesma pessoa. Certos personagens poderiam ter ficado de fora tranquilamente, se ao menos isso impedisse seus papéis vergonhosos e irrelevantes aqui.
Longe de ser a abominação apontada por vários fãs e críticos, este é um trabalho que restaura a identidade peculiar de antes num formato diferente. Em seu lançamento no Festival de Cannes de 1992, o filme foi vaiado e depois se saiu mal nas bilheterias, mostrando que o mito de Twin Peaks estava fadado a ser esquecido. Justamente o contrário aconteceu, tanto o seriado quanto o filme receberam atenção cada vez maior da audiência com o passar dos anos e, mais de 20 anos depois, uma nova temporada está para sair. Quem sabe dessa vez expliquem as questões que ficaram pendentes desde 1991, pois não há mais passado para revirar quando “Twin Peaks: Fire Walk With Me” desenvolveu o mito de Laura Palmer da forma definitiva.