O filme mais famoso de Hector Babenco, falecido há poucos meses, não tem seu sucesso limitado a essa popularidade, há uma boa chance dele ser também um dos melhores resultados do cinema brasileiro no exterior. Tudo bem, a produção não foi totalmente nativa, mas não deixa de ser uma grande conquista, uma vez que o ator William Hurt faturou um Oscar e o longa outras 3 indicações. “Kiss of the Spider Woman” conta uma história sem lugar ou período definido, mas quando os significados são à prova do tempo isso pouco importa. Tanto faz se o drama de prisão ocorre durante a ditadura militar do Brasil ou do Chile, existiram atrocidades aqui e lá. As partes boas nessa obra são universais e não dependem do contexto para brilhar.
Nas ruas, a perseguição política lembra os cidadãos todos os dias dos horrores de uma ditadur. Do lado de dentro, Luis Molina (William Hurt) e Valentin (Raul Julia) vivem em outro mundo, mas nunca longe o bastante da opressão. Valentin é um jornalista preso após fazer contato com militantes da resistência, já Luis é um homossexual preso por corrupção de menores. Os dois parecem não ter nada em comum além da cela que dividem na cadeia, mas aos poucos as fantasias extravagantes de Luis penetram a cabeça dura de seu colega revolucionário.
“Kiss of the Spider Woman” é outro daqueles filmes visivelmente influenciados por sua produção. Na época, foram poucos os que tinham interesse em transformar o livro de Manuel Puig num filme; até que Burt Lancaster, com seus 70 anos, começou sua própria campanha para financiar o projeto. Eventualmente, Ele teve que deixar a produção, abrindo oportunidade para o ator William Hurt entrar no papel que parece ter sido feito para ele. Parece. Seu desempenho foi fantástico e com certeza é o ponto mais forte aqui, mas até esse resultado bom chegar ele teve de tirar leite de pedra. Ou melhor dizendo, se virar para interpretar um personagem complexo..
Hurt teve dificuldades para entrar no papel, tendo de recorrer a métodos alternativos para entrar no personagem. Entre passear por São Paulo e visitar cinemas gays, o ator acabou participando de uma dinâmica interessante, talvez a maior responsável por seu sucesso. Para quem tinha dificuldades em achar o personagem dentro de si, criar química com outro ator é praticamente impossível. Notando essa dificuldade, William Hurt e Raul Julia decidiram trocar de papéis durante os ensaios para melhor compreender um ao outro. Em outra palavras, eles estavam colocando a empatia em prática. “Kiss of the Spider Woman” depende quase completamente de como os dois presos se relacionam. Sem isso, o filme perderia toda sua força e seria uma grande perda de tempo, que troca uma história superficial por outra metafórica sem um propósito dramático. Felizmente, essa dinâmica entre os atores rendeu a excepcional relação entre um flamboyant romântico e um homem das cavernas. Ambos conseguem ser carismáticos de seu próprio jeito, seja pela teimosia e insensibilidade de um fanático político ou pela quase inocência de um apaixonado pela vida.
Mas onde diabos uma mulher aranha se encaixa nessa história? Não era para ela estar num filme da Marvel ou algo do tipo? Bem, a história de “Kiss of the Spider Woman” é basicamente o dia-a-dia dos prisioneiros e muito mais do que isso ao mesmo tempo. Numa proposta similar à de Sheherazade em “As 1001 Noites”, o protagonista reconta um filme que viu a seu amigo de cela a fim de mudar a realidade. Valentin não parece estar nem aí para a história, que também não parece ter nada a ver com a vida deles, mas no fundo tem um valor metafórico impressionante. De certa forma, a relação entre aqueles dois homens é representada nas palavras de Molina. A atuação de William Hurt é tocante, sincera e mostra-se como um ótimo contraponto de emoção e transparência naquele contexto de desumanidade. Ele veste um roupão de cetim, toalha na cabeça e passa o tempo todo imerso em seus pensamentos; pensando em saborear pêssegos em calda e viver um romance. Hurt incorpora esses sentimentos como se fossem inatos de sua pessoa, fala de tomar um chá quente e dormir em lençóis de seda quando o ar úmido fede a sangue e cocô. Por outro lado, suas histórias revelam um lado de sua personalidade diferente dessa extravagância inocente, enriquecem uma dualidade moral não aparente desde o começo. De fato a trama expões isso de uma forma mais concreta, mas é só através da narrativa de Molina que a profundidade surge. Vão além de apresentar variedade, pois a audiência descobre um fato novo e outra coisa mais importante: como Luis Molina se sente a respeito disso, como isso muda sua pessoa.
Meu único problema com “Kiss of the Spider Woman” é a direção de Babenco em certos momentos críticos. Não sei se é regra em sua filmografia, porém não consigo deixar de me incomodar com a distância de sua câmera em certos eventos que pedem por mais proximidade. É uma crítica minha mais subjetiva, se posso dizer, mas em certos momentos me senti desconectado da trama pela câmera assumir uma postura distante. O filme torna-se mais impessoal e, por consequência, algumas reviravoltas dramáticas perdem força. Curiosamente, os momentos mais importantes não possuem essa parte negativa e é neles que o filme brilha; quando a câmera se aproxima das feições delicadas de Hurt e mostram a potência emocional de suas palavras e expressões. Não é uma obra-prima ou algo do gênero, simplesmente merece ser vista pelo menos por mostrar o Brasil sendo premiado no exterior.