Existem certos filmes que são tão populares que quase tornam-se clichês por si. Quando falam em “De Volta para o Futuro” não é incomum que o desconsiderem um pouco por ser “Sessão da Tarde” demais, ou talvez “Matrix” por não ter efeitos tão bombásticos. Mas se existe algo positivo nesse preconceito diria que ele só existe como reflexo da qualidade dessas obras. “The Sound of Music” é um outro exemplo frequentemente visto com esses olhares estranhos, que o pintam como “aquele musical água com açúcar que todo mundo conhece”. Não parece ser mau ou inapropriado, embora sempre haja quem veja um lado negativo nisso. De qualquer forma, este ainda é uma referência colossal tratando de Musicais e igualmente gigante nas bilheterias. É difícil não amar o som da música numa colina paradisíaca.
Baseado em uma história real, “The Sound of Music” acompanha Maria (Julie Andrews), uma garota tão atrapalhada quanto carismática que vai mal na sua tentativa de ser freira. Num lugar onde a disciplina e a oração são pregados fervorosamente, a garota que costuma fugir para as colinas para cantar não se encaixa bem. Então Maria recebe um convite inesperado: em vez de ser repreendida outra vez ela é enviada para a casa de um rígido aristocrata para ser a governanta de seus 7 filhos. Aos tropeços ela ensina algumas lições importantes às crianças enquanto aprende mais sobre si mesma.
Analisar um musical às vezes parece com checar a lista de compras: canções, coreografias, atuações, história, fotografia… Não é bem assim que as coisas funcionam, como uma lógica pragmática; elas dependem sim dos itens citados, mas não é só isso. “The Sound of Music”, por exemplo, se sai bem em todos estes aspectos e ainda apresenta uma integração fortíssima entre todos. É um épico musical, quase 3 horas de um clássico que ostenta danças perfeitamente harmônicas com as melodias de “Maria” e “Climb Every Mountain”. É a presença incrível de Julie Andrews soltando a voz com sua delicadeza de saber voltar a um papel menos fantasioso quando a trama pede. Não diria que é uma história para todos quando existem tantos que não gostam de musicais, mas os que vêem bom gosto em números de cantoria e dança dificilmente encontrarão menos que um dos melhores do gênero.
O filme coloca a audiência logo de cara nas estonteantes colinas austríacas, onde uma garota corre alegremente pelos gramados cantando a música tema, “The Sound of Music”. É uma imensidão quase surreal de grama e floresta que nem precisa se esforçar para surpreender os olhos. Mesmo assim, Robert Wise escolhe os ângulos que mais valorizam ambientes naturalmente bonitos. No fim das contas, uma mansão em Salzburgo serve mais como palco para os vários números musicais, porém não se limita a isso. Esta é uma produção gigantesca, sem escrúpulos na hora de apresentar exuberâncias e o mais importante: sabe usá-las de forma competente. No geral, isso tem muito a ver com a direção sólida de Wise num trabalho que supera com certa tranquilidade seu outro Musical de sucesso, “West Side Story”. Como poucos, ele consegue integrar cenários e coreografias, usando os tais palcos grandiosos para enriquecer ainda mais peças já complexas. Mas talvez a parte mais interessante deste longa seja como a dinâmica de um Musical é utilizada de forma que faça sentido.
Dessa vez a trama— num sentido realista — não dá uma pausa para os personagens dançarem, como normalmente se vê por aí; em vez da cidade inteira cantar junta e fingir que nada aconteceu logo depois, o roteiro coloca a música e a dança como ferramentas da história. A protagonista é mal vista por sua cantoria e é por ela que acaba sendo enviada aos von Trapp, ao passo que são essas mesmas melodias que mudam tanto a casa em que vai trabalhar. No geral, é apenas um detalhe, mas que não deixa de ser menos importante por dar uma variada no que já se conhece.
Como espetáculo, este filme acerta em todas as notas. É visualmente impecável e tem canções icônicas com coreografias que as deixam ainda mais marcantes. A já citada sequência de abertura é poderosíssima, com algumas montanhas e uma música bem escrita a atriz Julie Andrews conquistou o público já em sua primeira cena. Não que sua performance mais tarde deixe a desejar, de forma alguma, ela só consolida a boa impressão passada no começo com seu talento como atriz e cantora. No entanto, 3 horas de extravagâncias sensoriais podem não ser a praia de todo mundo. Felizmente, a história não se limita a isso. No mínimo, o longa entrega um festim para os olhos e ouvidos, enquanto eu acredito que ninguém coloca um filme esperando o mínimo.
É aí que este Musical se destaca. Ele tem toda a competência para tornar-se um marco no gênero e mais: é uma história que transcende as melodias alegres com suas próprias surpresas e mudanças de tom. Não vou dizer que é uma mistura que vai do Noir ao filme Família porque a intenção aqui nem é essa. Num mesmo longa-metragem temos o rígido Capitão von Trapp (Christopher Plummer) e Andrews como uma personagem tão singular que chega a ser indescritível — seu próprio tema a descreve como um “flibbertigibbet”, um “will-o’-the-wisp”, alguém magicamente extrovertida. Destes dois opostos, não é difícil dizer qual deles é mais icônico. “The Sound of Music” pende mais para o otimismo de Maria, o lado bom da vida, e nem por isso deixa de passar pelos cantos mais escuros, como mostra a presença do Capitão. A história tem o grito por liberdade, o banho de água fria, o amor jovem, a paixão ingênua e às vezes um pouco de tensão em boa hora, que coloca em risco toda aquela montanha de felicidade construída até então. Como outras obras-primas, este é um pacote completo.
As colinas continuam vivas com o som da música mais de 50 anos depois do lançamento original e Julie Andrews continua espetacular no papel de sua vida, a protagonista de um dos melhores filmes de todos os tempos. “The Sound of Music” é um Musical quintessencial e dificilmente desagradará alguém. Os únicos possíveis problemas são o otimismo radiante e a duração, ambos que não chegaram a me incomodar. Talvez exista um ponto digno de melhora — nunca um defeito: acho que poderiam ter colocado mais músicas. Fazem bis de praticamente todas as canções, enquanto não seria nada mal colocar uma ou duas a mais. Bem, pelo menos elas são tão boas que poderia tranquilamente escutá-las por mais algumas horas sem cansar.