Não é a primeira nem a segunda vez que falo sobre a distância entre títulos originais e suas traduções aqui no Brasil. “Quando Duas Mulheres Pecam” pode indicar erroneamente uma história sobre qualquer outra coisa diferente do assunto de verdade. Duas mulheres que vivem na década de 50 e têm um romance proibido ou quem sabe duas amigas compartilhando o segredo de que traem seus maridos… As possibilidades são várias, mas, por incrível que pareça, o simples título original “Persona” coloca os pés no chão e direciona muito melhor o espectador nesta história quase fantasiosa por dentro da psique humana. Isto é, com um pouco de Psicologia Analítica para ajudar no fato de que persona se refere à parte que o mundo vê da personalidade de uma pessoa.
Elisabet Vogler (Liv Ullmann) é uma atriz de renome que repentinamente se desligou do mundo. Todos os exames médicos e psicológicos mostram que sua condição é saudável, mas ela não fala uma palavra sequer a ninguém. Enviada à casa de praia da enfermeira-chefe do hospital, Elisabet fica aos cuidados da enfermeira Alma (Bibi Andersson), jovem e entusiasmada pela chance de cuidar de alguém tão importante. Todos os dias Alma conversa sem parar com sua paciente eternamente calada e as coisas correm bem até que tudo muda quando os limites entre essas duas personalidades ficam cada vez mais tênues.
Antes de qualquer coisa, vale dizer que este é um filme abstrato, cheio de simbolismo e significados subliminares. Assistir com uma visão lógica, racional ou cética demais pode acabar limitando injustamente uma história de tantos significados e interpretações; pois, convenhamos, a idéia de duas pessoas misturarem identidades é um tanto absurda para ser encarada literalmente. Para mim, por exemplo, é difícil não enxergar “Persona” claramente imerso na psicologia analítica de Carl Gustav Jung; as obviedades da imagem e dos atos não são limitados ao concreto, seus sentidos vão além do que é imediatamente percebido. Seria este longa-metragem, então, outra coleção de imagens quase aleatórias? A mesma coleção frequentemente criticada por mim, mas que, convenientemente, são elogiadas agora por se encaixaram na minha história de vida? Gosto de acreditar que não. Afinal, é bem sabido que as histórias mais próximas do espectador costumam ser melhor vistas — como quando o espectador se sente representado pelas escolhas morais de um personagem. É sentindo um significado universal na obra sem ter vivido aqueles eventos na pele que acabo acreditando no sucesso deste filme de Ingmar Bergman.
Confesso que conhecer um pouco da tal psicologia Junguiana me ajudou a decifrar alguns dos enigmas vistos aqui. É apenas natural, pois a história de vida do espectador é — e sempre será — uma ferramenta onipresente na hora de analisar filmes ou qualquer outra coisa; é através do aprendizado que traduzimos o que foi classificado como estranho uma vez. Não é possível medir a extensão do conhecimento humano, então jamais direi que é necessário conhecer algo específico para compreender melhor este longa. É aí que está a genialidade de “Persona”: por mais que existam tantas formas de interpretar o que acontece, o filme dá deixas para que o espectador crie sua própria explicação sem nunca fugir da idéia central.
Numa empreitada ingênua, a enfermeira espera que abrir-se vai fazer com que sua paciente se abra também. Ao contrário do que a trama sugere ao colocá-la como enfermeira, ela não tem noção da condição de Elisabet ou sequer sabe como proceder. Seria isso ignorância ou egoísmo? Ela pode também ter aproveitado a chance para encher de confissões aquele ouvido passivo. Não importa muito qual caminho o espectador escolhe, todos chegam no mesmo destino: como aquele conflito toma proporções bizarras. Pode ser uma realidade alternativa em que fumar carteiras de cigarro e se encher de vinho constitui tratamento profissional, ou quem sabe uma metáfora para uma mente perturbada. Um lado desta psique preferindo se fechar para o mundo e organizar seus pensamentos; o outro relatando experiências sem tirar uns segundos para pensar no que faz.
O espectador pode engolir a prepóstera idéia da enfermeira e sua paciente serem mandadas para uma casa de praia ou, se preferir, entender que isso é apenas uma alegoria para uma pessoa lidando com sua consciência. Não importa. O que interessa mesmo é a maneira como Ingmar Bergman constrói o conflito entre aquelas duas partes, sejam elas pessoas diferentes ou facetas de uma mesma personalidade. De todos os elementos usados, o mais importante sem dúvida é o diálogo e, pensando bem, não poderia ser diferente. A história de uma paciente que para de falar por escolha própria só poderia ter outro personagem para compensar tal silêncio. Entre minutos de conversa, Alma conta sua vida inteira, das bobeiras até seus segredos mais bizarros. Por que ela fala disso? Por que ela fala tanto? Com tantos elementos sutilmente fora do lugar, Bergman dá relevância ao comum e constrói aos poucos a fusão entre aquelas duas pessoas tão distintas. Aos que preferem indícios mais concretos em propostas absurdas, o cineasta não decepciona. Por mais que as ações estabeleçam diferenças, o figurino frequentemente similar das personagens sugere uma união. Por outro lado, em uma das cenas críticas a iluminação divide o rosto delas com uma sombra forte; uma tem o lado direito iluminado, a outra tem o esquerdo. Como podem duas coisas serem iguais e diferentes? Não é uma sobreposição de semelhantes, mas um encaixe de peças que precisam ser de formatos diferentes para se completar. E claro, para toda Liv Ullmann calada — que constrói seu papel com expressões faciais e ações — há uma Bibi Andersson radiante dando nome e sobrenome a tudo que sua parceira de elenco deixa de falar. Enquanto Bergman opera com maestria os símbolos num segundo plano, são as atrizes que colocam as engrenagens para rodar com atuações espetaculares.
“Persona” é um filme que pode ser resumido pela sua premissa. Nada do que ele oferece em seus 85 minutos foge muito do que é descrito em menos de um parágrafo, o que não é ruim de forma alguma. A melhor parte dessa história de Ingmar Bergman é ver como diabos ele tira do papel uma trama sobre personalidades amálgamas e se safa com uma boa reputação 50 anos após o lançamento. A margem para interpretação é grande e o conteúdo simbólico não deixa a desejar no quesito de criar essa margem. De cabeça aberta e sem ceticismo, este longa pode ser apreciado como o bom filme que é.