Festivais de cinema costumam ter como proposta colocar em evidência filmes que não recebem tanta atenção do circuito comercial. Nesse meio surgem novas idéias e novos diretores, havendo espaço ainda para os clássicos. Um destes é “Mouchette”, de Robert Bresson. Nunca tive muito interesse por ele por ter lido pouco sobre o trabalho de Bresson. Contudo, vale notar que em termos de fazer Cinema este é um grande referencial para artistas que procuram meios alternativos de contar suas histórias. Longe de uma obra prima, mas com seus méritos, “Mouchette” mostra que tem muito para ensinar no que se refere a não seguir a maré.
Mouchette (Nadine Nortier) é uma garota pouco favorecida pela vida. Ela mora numa casa humilde com sua família, não tem bons modos, não vai bem na escola e não é muito bonita – os colegas a chamam de cara de rato. As roupas velhas e sapatos maiores que os pés são apenas reflexo de sua vida em casa, onde a pobreza toma conta. Seu pai é negligente e rude, enquanto sua mãe nada pode fazer além de ficar deitada, pois sua saúde não permite. A história acompanha a garota em seu dia a dia difícil conforme ela enfrenta frequentes maldades e humilhações.
Quando disse que Robert Bresson sabe o que faz na hora de conduzir uma história diferenciada não quis dar a entender que suas tramas são impecáveis ou algo do tipo. No geral, “Mouchette” é um filme competente sem muito para justificar o alarde em cima de si. O que impressiona, no entanto, são cenas que pontualmente mostram a genial visão de mundo de Bresson. O final, especialmente, é uma bela demonstração de como concluir uma história com impacto sem necessariamente seguir o princípio de um roteiro tradicional — como criar um clímax antes da conclusão. Abraçando o pessimismo do Noir, o diretor banaliza-o ao aplicá-lo em cenas do cotidiano ao mesmo tempo que faz isso cuidadosamente. Nesse sentido, é como se os fatos mudassem para algo mais comum enquanto o efeito permanece forte pelo uso pontual.
Justamente por isso talvez falte substância ao resto de “Mouchette”. Em vários momentos, especialmente no começo, me senti um pouco entediado com o que via porque simplesmente faltava norte naquilo tudo. Às vezes tudo parece um pouco vazio, especialmente quando o sofrimento da garota, que é o grande ponto forte do filme, sai de cena em prol de outros personagens. Eis o problema: estes não são tão interessantes ou bem trabalhados como a protagonista, seus arcos são um tanto mais vazios. Um exemplo é Bresson trabalhar a idéia de que sempre há um objeto desejado disputado entre interessados, a qual para mim teve pouco impacto e é relevante só em nível metafórico, que só funciona dentro daquele universo. Existem os fatos, outros fatos para metaforizar uma idéia e de pouco a nenhum significado, ao menos não que eu tenha capturado.
O real sucesso aqui está centrado no modo como Mouchette, a personagem principal, é representada. O mundo ao seu redor é um grande reduto de pessoas mau caráter e condições pavorosas. Pegando pesando sem forçar a barra, Bresson consegue pintar seu mundo inteiro de forma tão desprezível que justifica as atitudes da protagonista. Dessa forma, o espectador consegue se colocar no lugar dela sem necessariamente gostar da garota. Afinal de contas, ela ainda é aquela filha malcriada do seu casal de amigos que todo mundo fala mal. Ela vaga por mundo que não a quer pisando nele e é rechaçada quase constantemente, de forma ainda pior quando as coisas parecem ter melhorado. Numa das cenas mais bonitas, por exemplo, ela se diverte num parque de diversões e curte um momento de ânimos raramente positivos. Mas como é constantemente reforçado, nenhum ato bom fica impune. O mundo revida alegria com angústia na mesma intensidade e destrói a garota uma humilhação por vez. Curiosamente, a escolha de uma garotinha como protagonista dá um toque macabro e até sádico à trama, funcionando bem com a visão de mundo obscura de Bresson. Ela é apenas uma garota, tão jovem que nem tem espaço para ambição em seus planos; a vida bate, agride e abusa dela e sua resposta não é a maldade vista pelos outros. Suas rebeldias infantis são apenas a saída de alguém que não viveu o bastante para devolver na mesma moeda.
Não posso dizer que esperava mais de “Mouchette” pois não havia ouvido falar dele até o Festival. Foi depois de assistir que percebi que minhas impressões foram abaixo da opinião popular, se assim posso chamá-la. A representação de uma sociedade podre e detestável em contraste com a figura jovial da protagonista tem um efeito impressionante. Só senti falta de um pouco mais de cuidado em trechos da história que simplesmente não são cativantes, diferentes de outros em que a força do argumento de Bresson não é nada menos que impressionante.