Filmes surrealistas ou com traços muito fortes do gênero Fantasia são como uma faca de dois gumes: o aglomerado de imagens excêntricas pode entregar um significado relativamente palpável ou uma bagunça sem qualquer esqueleto de sentido que seja. Do lado positivo temos o Faroeste “El Topo” — longe de ser perfeito, mas ainda assim uma obra agradável — enquanto do outro temos o mediano “Eraserhead“, que tem como pontos positivos apenas algumas perfumarias e conquistas menores. Ruim ou bom, existe a garantia que a experiência não será nada sensata; o que por si já é uma qualidade, mesmo que mínima, por se diferenciar do que se vê normalmente.
“El Topo” em português significa “A Toupeira”, ela é um animal que passa a vida toda debaixo da terra buscando a luz do sol. Quando ela a encontra, acaba ficando cega pelos raios. Esta é a informação dada pelos créditos iniciais do filme. Logo somos introduzidos a um caubói trajando preto, montado em um cavalo também preto e com uma criança nua na garupa. Ao longo de um horizonte místico, repleto de locais extravagantes e indivíduos singulares, o caubói passa por uma viagem de auto-conhecimento, reflexão, religião, violência e outros totens de sua vida como um homem à deriva do mundo.
Apesar de ser claramente um Faroeste, este filme não tem absolutamente nada a ver com as obras mais tradicionais do gênero. Muitos dos mitos e arquétipos não estão minimamente presentes, enquanto os que mostram as caras o fazem sob um caráter simbólico e talvez até simplesmente estético. Como li uma pessoa escrever, o folclore de velho oeste serve mais como um mecanismo para tornar a loucura mais amigável. Entretanto, isso não é feito de maneira que o espectador seja insultado. De seu jeito, o diretor integra alguns elementos do Faroeste à sua viagem semântica, tal como se vê no típico pistoleiro nômade, a mão mais rápido do oeste. Ainda que estes aspectos não fossem propositalmente incorporados, acredito que há uma boa margem de interpretação para sanar algumas dúvidas. Tudo em sua devida medida, sem que essa margem extrapole os limites da estrutura e faça com que toda a forma do filme seja composta pela interpretação do espectador.
Ao contrário de “Eraserhead“, aqui os debates sobre o real significado se tornam muito mais proveitosos por conta da riqueza de conteúdo. Existem vários indícios que tornam mais fácil a conversão da experiência em algo maior, algo que signifique mais do que a imagem por si. O mecanismo mais utilizado por Alejandro Jodorowski, diretor e protagonista, para atingir esta riqueza é o simbolismo, expresso através de um misto entre elementos básicos do cinema, como o diálogo e a imagem, e as qualidades do Western. Em um exemplo apropriado, pode-se ver como o ambiente é usado de maneira inteligente com a natureza surreal de tudo. Quando a orientação geográfica não é algo que deve ser levado a sério, é necessário que o ambiente permita essa flexibilidade. Neste contexto entra a imensidão da paisagem do Velho Oeste, pois não importa muito a distância entre um lugar e outro, esta nunca foi uma questão relevante no gênero. Ver então o protagonista mudar de ambiente, às vezes muito repentinamente, não é algo estranho; o que importa é sua viagem, não seu trajeto.
Devo dizer também que um filme bizarro como este não tem sua qualidade medida por sua plausibilidade, ou seja, se tudo aquilo pode ser traduzido em termos mais leigos; ou ainda pela abertura a interpretação externa. Se este fosse o caso, a obra de David Lynch estaria entre as melhores da história por conta de sua infinidade de possíveis significados. O que se sente com os rios de sangue, com os personagens disformes e as atitudes absurdas não é um simples espanto ou confusão, cada um levanta o ponto de como aquilo vai se encaixar com o que foi visto antes. Todo a progressão do longa funciona como uma construção, detalhes vão somando para montar algo maior, que no final das contas pode não ter nada a ver com o que se tinha em mente antes. Esta construção fica sob a responsabilidade das mãos do espectador, finalmente. Ele dará sentido para aquele conjunto de imagens, mas sob uma tutela mais íntima do diretor; como se o planejamento das possíveis conclusões fossem mais ou menos premeditadas. É um sentimento esquisito de descrever e é efetivamente o que faz a experiência ser mais interessante que seu sentido literal.
Para os curiosos, recomendo a leitura de algumas teorias sobre este filme, algumas são bem completas e a temática é frequentemente variada. Pessoalmente, acho que tomei o caminho seguro ao interpretar tudo como uma visão sobre a natureza humana, indo do extremo destrutivo e individualista ao extremo construtivo e altruísta. Alguns vão mais longe ao ver tudo como uma representação da ascensão das teologias judaico-cristãs. Acredito que isto mostra como o material aqui rende boas interpretações, melhores do que uma especulação quase aleatória em cima de imagens bizarras.