Antes da série do Netflix e da série Britânica, em 1989, Michael Dobbs escreveu seu primeiro livro: “House of Cards”. Este alavancaria sua carreira como escritor e consequentemente seria adaptado para a televisão. Trazida para a telinha pela BBC em 1990, o livro de Dobbs foi adaptado em uma minissérie de quatro episódios, no que seria a primeira parte de uma trilogia. Após sucesso na crítica e audiência, Dobbs continou a história de Francis Urquhart com o livro “To Play the King” em 1992, e mais tarde com “The Final Cut” em 1995. O conjunto das três minisséries é conhecido como “The House of Cards Trilogy”.
Sem dúvidas a característica mais proeminente da trilogia é seu personagem principal, Francis Urquhart, vivido pelo majestoso Ian Richardson. Membro do Partido Conservador Britânico em um dos cargos mais altos, Francis é responsável por manter comportados os membros de dentro e de fora do partido. Dentre suas características principais destacam-se sua inescrupulosidade e maquiavelismo, o que torna fácil passar por cima de todos para alcançar seus objetivos; qualidades comuns a um vilão genérico, mas que aqui são apresentadas de maneira elegante. Mesmo cheio de características questionáveis, a magia flui com abundância da atuação extraordinária de Ian Richardson. O ator não só cumpre bem seu papel como o personagem, mas também adiciona certo grau de riqueza a Francis Urquhart. Richardson cria uma atmosfera monumental em volta de sua figura, descrita na série como uma aura de poder magnética, que faz dele extremamente sedutor — algo como a síndrome de Kissinger, o efeito afrodisíaco do poder.
As maquinações e momentos fortes de Francis Urquhart se encontram sempre regadas pelo charme e finesse de Richardson, tratando de toda e qualquer situação com classe e elegância singulares. Isso contribui especialmente para o estabelecimento de empatia entre o espectador e o anti-herói. Mais do que uma vez o espectador acaba virando o rosto para os atos maldosos do protagonista, às vezes até torcendo para que seus planos dêem certo. Tudo que poderia ser feito de maneira bruta e sem graça é apresentado de um jeito que quase parece aceitável, algo no mais estilo canalha com estilo. Tratando de Política, é apenas natural que qualquer plano deva ser executado com cuidado, nada como um criminoso comum poderia fazer; para ter sucesso, o protagonista dança tango com a lei, dobrando-a a seu bel prazer conforme a necessidade. Ao passo que estes esquemas se complicam, a rede de poder de Urquhart apenas se fortalece. Infelizmente, também é aí que uma grande falha se encontra: as maquinações realizadas pelo protagonista fazem sentido e são plausíveis, mas ainda esperava algo um tanto mais complexo de um indivíduo de tal intelecto. Uma pessoa com tanto poder poderia facilmente mexer uns pauzinhos para conseguir o que quer, poder este que os roteiristas possuem e facilmente poderiam ter usado para executar melhor tais cenas.
Apesar do elenco não ser dos mais extensos, os coadjuvantes mais relevantes são bem competentes. A história em nenhum momento se aprofunda muito em suas vidas pessoais por causa do foco em Urquhart, mas quando são exibidos por um pouco mais de tempo cumprem bem seu papel. Dou destaque para a personagem Mattie Storin, garota com quem Francis desenvolve uma relação no maior estilo Hannibal Lecter e Clarice Starling, sendo tão instigante e absurdo quanto. Destaque também vai para Elizabeth Urquhart (Diane Fletcher), a inteligente esposa do protagonista que sempre se faz presente como consigliere ou cúmplice de seus planos. Mas ao mesmo tempo que os coadjuvantes relevantes são competentes, o resto deixa a desejar fortemente com seus papéis extremamente limitados e personalidades rasas. Felizmente este resto tem pouquíssimo espaço no desenrolar da trama, o que evita que suas interpretações dignas de novela estraguem a experiência.
Outro ponto forte da trilogia é a trama de cada uma das partes, que em conjunto acompanham a carreira do protagonista, mas individualmente contêm arcos fechados. Em termos de qualidade, as duas primeiras partes mantém um nível bem equilibrado, enquanto o terceiro continua bom mas não acerta tanto quanto os outros. A segunda parte em especial foi a minha favorita. A trama e o atrito de Francis com outro personagem é especialmente brilhante, o tipo de material que equilibra ambição num contexto mais realista perfeitamente. O enredo se encontra sempre em sintonia com o desenvolvimento de seus personagens por conta das atitudes deles terem tanta influência na história quanto em suas próprias personalidades. Essa construção mútua, no entanto, não se limita aos diretamente envolvidos na história, ela também influencia outras pessoas próximas de forma que suas vidas fiquem ainda mais sob o poder de Urquhart, deixando ele novamente afirmar sua integridade através desta relação.
Em contrapartida, um dos tópicos mais passíveis de controvérsia é o personagem quebrar a quarta barreira constantemente, comunicando-se com o espectador sobre os mais variados assuntos. No fim das contas, acredito que a técnica foi bem utilizada, criando momentos cômicos e até dando uma visão privilegiada sobre o que se passa na mente do anti-herói. Mais interessante ainda é a avaliação diferenciada sobre esse conceito, estaria Francis falando com o espectador ou com sua própria consciência esquizofrênica? As perguntas realizadas a quem assiste seriam direcionadas a elas mesmo ou Urquhart estaria perguntando a si mesmo numa esperança de justificar e auto-afirmar seus atos? Não são questões que a série aborda ou sequer tenta responder, mas são interessantes ainda assim por funcionarem sem distorcer a proposta original.
Ainda vale a pena comentar sobre a inspiração Shakespeariana que certos atores adotaram. Ian Richardson foi membro fundador da Royal Shakespeare Company em 1960 e além de ser um ator de presença no teatro Shakespeariano continuou como tal mesmo depois de sua entrada no cinema. Pois bem, para sua interpretação de Francis Urquhart ele relatou ter usado a abordagem de Shakespeare em cima de Ricardo III, um rei da Inglaterra inescrupuloso. Na mesma linha, Elizabeth Urquhart toma inspiração em Lady Macbeth. Esposa do General Macbeth, da peça shakesperiana, a dama sempre se encontra manipulando e aconselhando o marido em suas atividades. Sem dúvida tais inspirações mostram que a qualidade das interpretações não surge do nada, independente da época ser bem diferente.
Tanto o livro quanto a série House of Cards foram usados na adaptação americana de 2013 pelo Netflix. A série conta com Kevin Spacey no papel do protagonista Frank Underwood, a versão americanizada de Urquhart, e com o próprio Michael Dobbs como produtor executivo da série. O seriado, que tem previsão para cinco temporadas, foi indicado a vários Globos de Ouro e a outras diversas indicações ao Emmy. Já a Trilogia Britânica, ganhou apenas um Emmy em sua primeira parte, o que reflete apenas parcialmente a qualidade deste grande trabalho.
No fim, a Trilogia da curiosa jornada de Francis Urquhart vale muito uma conferida. Atuações exímias e um enredo bem estruturado no geral se mantém como os atrativos definitivos aqui, embora falte um pouco de polimento em alguns dos coadjuvantes menores e nos esquemas mais complexos do protagonista. Mesmo quem nunca viu a série americana poderá aproveitar a experiência ao máximo sem esforço, ainda mais porque são apenas 12 episódios no total.