Existem certas coisas no mundo que simplesmente não deveriam existir. Não se trata daquilo de que não se gosta, das trivialidades e incômodos encontrados diariamente que facilitariam a existência com sua ausência. Há isso e há também um lado muito mais negro destas mesmas coisas, que as torna incomparavelmente mais difíceis de contemplar. Mesmo que em menor quantidade, é apenas lamentável que algumas pessoas tenham de passar por isso e carregar o fardo dos crimes de uma outra pessoa pelo resto da vida. “Dear Zachary: A Letter to a Son About His Father” é um documentário que quase por acaso captura uma corrente de dor inimaginável e absolutamente indesejável.
Assim que se forma no ensino médio, Andrew Bagby tenta entrar em uma faculdade para seguir seu sonho de se tornar um médico. Ao longo do caminho, pessoas, novos amigos, velhos amigos, amores e tragédia. Seu último relacionamento se prova como tal quando sua ex-parceira pede para conversar, viaja centenas de quilômetros e crava cinco tiros em seu corpo. Investigações acerca do crime iniciam quando Kurt Kuenne, o diretor do documentário, decide reunir todo o material que gravou em conjunto com seu velho amigo para preservar sua memória. No entanto, os próximos eventos mudam completamente os planos iniciais de criar um memorial em vídeo.
Há formas e formas de realizar um documentário. Existe o planejado meticulosamente, roteirizado até o limite de quase extrapolar a manipulação de conteúdo; a dramatização de eventos baseada em evidências de outra natureza; a reunião de fotos e vídeos de um arquivo; uso extensivo de narração ou de entrevistas… Para um gênero normalmente tido como sem graça, há muita diversidade. “Dear Zachary”, por sua vez, é como uma jornada de fato. O projeto começa como uma idéia e, conforme o tempo passa, os objetivos e a história mudam, exigindo do documentarista a flexibilidade de reconhecer seu material criando vida própria e seguindo um caminho imprevisto. É uma boa demonstração daquilo que às vezes pode ser um pouco intangível nos livros de teoria, a história se escrevendo diante dos olhos do cineasta. Infelizmente para os envolvidos neste caso, a história bem que poderia ter ficado nos planos originais.
Caso o espectador já conheça os eventos centrais de “Dear Zachary”, talvez um pouco do impacto seja amenizado, pois para mim foi significativo sentir que estava caminhando junto com o cineasta, pisando onde ele pisou e encontrando o que jazia em seu caminho. E quando este caminho traz as coisas vistas aqui, a surpresa passa a ser uma parte crucial da experiência. A construção narrativa vista aqui transmite a sensação de descoberta e de vivência, enfrentar cada evento seguindo a mesma dinâmica da vida real de descobrir informações novas e ajustar a perspectiva sobre toda a situação. Por esse mesmo motivo, fica um tanto mais complicado falar sobre este documentário sem falar muito e acabar estragando um momento que definitivamente teria maior impacto se conhecido quando o filme planeja. Mostrar-se aberto para a experiência é o único pedido desta obra e a recompensa certamente vale a pena. Essa não é uma história como qualquer outra.
A única parte incômoda de “Dear Zachary” é a falta de polimento geral da obra. Por um lado, este é um ótimo exemplo que a resolução da imagem não precisa ser em 4k, nem o som ser cristalino como num templo hindu, nem os cenários serem preparados cuidadosamente. O conteúdo transcende a tecnologia e as limitações de produção e nunca deixa a atenção recair sobre como é feio, por exemplo, gravar uma entrevista com uma pessoa em seu quarto sentada numa poltrona amarelada. Analisando friamente, o filme é gravado com a primeira geração de câmeras de alta definição sem varredura progressiva e captura as pessoas onde elas estão, sem se preocupar muito com composição e preparação de cenário, porém tudo isso são detalhes perto daquilo que realmente importa na experiência. Não se pode ressaltar demais como os eventos falam mais alto que qualquer outra coisa.
O incômodo de fato surge em dois aspectos que podem ser tratados como decisões artísticas não ligadas ao nível de produção: a primeira diz respeito à repetição de conteúdo, seja de informação ou material, que soa como descuido na edição e poderia ser evitada com um corte ou um tratamento diferente para não parecer duas cenas repetidas; já a segunda está relacionada à decisão de Kurt Kuenne de usar alguns artifícios narrativos a fim de criar ênfase e impacto, mas isso nem sempre funciona porque sua habilidade como narrador é modesta e deixa uma impressão de improviso, de algo meio cru. Repetir uma frase específica enquanto ela sobrepõe outras informações usando o mesmo clipe de aúdio, por exemplo.
Assistir a um ótimo filme em resolução de DVD sempre será uma experiência melhor que ver algo medíocre em alta definição e “Dear Zachary” mostra exatamente isso. Por vezes parece um documentário caseiro e em grande parte é mesmo, já que uma parte das imagens são filmes caseiros do diretor com Andrew Bagby, contudo isso até que pode ser considerado como certo charme. Nada afeta a transmissão do conteúdo, de uma história sobre um caso de muita repercussão na América do Norte e no Canadá, em especial. É o tipo de história que faz o espectador pensar que eventos assim, do teor mais fatalista e absurdo, não deveriam acontecer. Não há nada que justifique isso. Esta é uma oportunidade única de ver como às vezes se vai longe demais, até lugares que nem as obras de arte mais ácidas chegam a tocar porque é simplesmente longe demais.