Até ver “In a Lonely Place” fazia um tempo que não assistia a nada de Nicholas Ray, um diretor que não conheço tão a fundo quanto gostaria. Havia esquecido seu estilo sentimental e tocante, sensível aos momentos mais emotivos do ser humano sem se tornar piegas. Em sua carreira, ele mergulhou no oceano de conflitos da adolescência e expôs tanto os problemas dessa fase da vida como os de uma nação inteira; inverteu os papéis clássicos do Faroeste e mostrou que os maiores atritos não se resumem a tiroteios. Se eu tivesse lembrado de tudo isso, com certeza não me surpreenderia com Ray transformando o relacionamento de um casal num excelente Noir.
Dix Steele (Humphyrey Bogart) é um roteirista talentoso e de temperamento forte que não mostra esse talento faz um tempo. As pessoas o querem de volta à ativa e o caminho para isso é adaptar um bestseller chato, então Dix, sem a mínima vontade de ler o livro todo, pede para uma secretária contar a história para ele. Ela é encontrada morta pouco tempo depois de sair de sua casa. Acusado de assassinato e sem fazer muita questão de livrar sua cara, o roteirista esbarra numa linda mulher que também mostra ser sua salvação. Ela depõe a favor dele, mas será que ele é realmente inocente como ela achava?
Mais do que um filme sensacional, “In a Lonely Place” tem algumas coisas a dizer. Em primeiro lugar, mostra que talvez Humphrey Bogart tenha nascido para o Noir. Seu papel mais famoso sempre será o Rick de “Casablanca“, um romance do período de guerra que o pinta como um galã de coração duro. Rígido e egoísta, mas só até a hora que alguém de seu passado mostra quem se esconde debaixo daquela casca de ferro. Porém um ano antes ele já havia feito seu nome no clássico Noir de John Huston: “The Maltese Falcon“; e anos mais tarde, brilhou novamente em “The Big Sleep“, grande obra de Howard Hawks. Com tantos sucessos no currículo, sobra espaço para mais? Com certeza. Bogart novamente evita o clichê de pegar carona em sucessos garantidos e não repete papéis. Aqui ele encarna alguém que pode se gabar de originalidade. Pode não parecer tanto, pois ser explosivo não é exatamente um traço raro; ainda assim, é mais que o bastante para que alguém como Nicholas Ray explore essa natureza. “In a Lonely Place” não é apenas um grande espetáculo de atuação, que captura do extremo ao sutil da natureza humana através do drama vivido pelos personagens, mas uma obra grande o bastante para fazer frente a “Sunset Boulevard” — um dos melhores filmes de todos os tempos, também lançado em 1950.
Dix Steele não é alguém com uma condição rara ou humor estupendo, é apenas alguém com personalidade forte e palavras afiadas para todo momento. Poderia ser o estereótipo de um cara descontrolado, enquanto é muito mais que isso. Nicholas Ray sabe que amor não é dizer “eu te amo” e que raiva não é encher a boca de palavrões. Para ele, é acreditar no sentimento e demonstrar com ações. Ao escolher um roteirista como protagonista, ele vai ainda mais além e aproveita o que se chama de temperamento de artista, encaixando-o num personagem abusivo nas atitudes e bondoso no coração. Dix pode muito bem ser mal visto, dependendo do modo como as coisas são interpretadas, mas, gostando dele ou não, não há como dizer que não é a base perfeita para o enredo. Existem dois núcleos, basicamente: o assassinato da secretária e o relacionamento com Laurel Gray (Gloria Grahame). O protagonista de Bogart é o elo entre esses dois focos e representa a dualidade que faz tão parte de sua pessoa. Por um lado, seu temperamento volátil levanta suspeitas sobre sua participação no crime; enquanto em contrapartida, seu envolvimento com a Senhorita Gray mostra alguém que só tem impulsividade na hora de mostrar seu afeto.
Laurel Gray é engolida nessa corrente de tensão emocional, pressionada até seu limite por um homem que vive sempre em opostos. Seu papel em “In a Lonely Place” é talvez maior que o próprio enredo, ou melhor dizendo, os dois personagens fazem a história ir para frente. Os núcleos mencionados descrevem pontualmente os arcos de história aqui — talvez com um ou dois menores que não mencionei — e servem mais como apoio para as incríveis atuações. O conflito de Laurel não é resumido à natureza de Dix, existem elementos da história que dão mais margem para ela criar o problema em sua cabeça. Isso, por sua vez, acrescenta também à performance impressionante de Bogart. Ele é apenas subjetivo e misterioso o bastante para sustentar algumas suspeitas sobre ele. Deste ponto surgem várias outras questões que tornam o conflito maior do que a simplicidade sugerida. Mas o que impressiona mesmo é quão facilmente um Noir pode ser visto na banalidade da vida real. Não conto nenhuma novidade falando que relacionamentos podem ser dramáticos, mas e se os momentos de estresse fossem vistos pela dinâmica fatalista do Noir? Em vez da sensibilidade de tais momentos ser ignorada, eles são potencializados a ponto de mostrar que o Noir não é uma definição academicamente restrita.
Lembrar do estilo único de NIcholas Ray foi uma surpresa muito agradável. Ver que ela funcionou tão perfeitamente num Noir, então, foi a cereja do bolo num filme que é até simples, vendo por cima, mas trabalha tão bem o que apresenta que não merece ser considerado menos que uma obra prima. Atuações incríveis por trás de outro personagem icônico de Humphrey Bogart e da charmosa Gloria Grahame; uma história que fortalece o conflito emocional entre eles; um gênero cinematográfico que não perdoa ninguém; e o já conhecido tato do diretor quando se trata da natureza humana em sua face mais sensível. Não há como dar errado.